segunda-feira, 2 de julho de 2012

A ENTRADA DE JESUS EM JERUSALÉM: Mateus 21.1-11


A imagem acima é a leitura que Pietro Lorenzetti fez da narrativa evangélica conhecida como "Entrada Triunfal", por volta da primeira metade do século XIV EC. Este é o texto que vamos comentar nesta postagem, a partir da versão do Evangelho de Mateus.

No início do capítulo 21 de Mateus, o leitor atento pode notar o retorno de um recurso literário já usado pelo autor nos primeiros capítulos do evangelho. Nos referimos ao emprego de uma passagem do Antigo Testamento como se fosse um anúncio antecipado de eventos da vida de Jesus (21.5). O emprego dessas citações, como já vimos, quer acima de tudo legitimar o Jesus que Mateus anuncia, fazendo-o especial por ser o instrumento pelo qual Deus cumpre na terra seus planos e projetos. Citando passagens que eram lidas tradicionalmente como profecias a respeito de uma figura messiância e ligando-as à sua narrativa da vida de Jesus, Mateus está claramente fazendo este Jesus que anuncia encaixar-se no papel de Messias para si mesmo e para outros. Sabendo disso, é interessante observar que nas perícopes que giram em torno de uma citação do Antigo Testamento, é a intertextualidade que delineia a narrativa; isto é, aqui a citação é um marco, um elemento textual de forma fixada que faz com que a história contada, e nela a própria vida de Jesus, se adequem a seu conteúdo.
Essa mesma narrativa já existia em Marcos 11.1-11, que é a fonte de Mateus para os textos que estamos lendo. Mas Marcos não trazia a citação de Zacarias 9.9 que Mateus incluiu, o que nos mostra mais uma vez que o uso da profecia em associação com a vida de Jesus é uma estratégia literária da qual Mateus se utiliza com mais frequência que os demais evangelistas e de maneira própria. Marcos já apresentava sim uma citação do Salmo 148.1-2, que Mateus mantém. Isso quer dizer que estamos diante de um texto particular, que não é totalmente moldado a partir da leitura que o autor faz do Antigo Testamento, pois parte de um texto já escrito. Cabe ao leitor de Mateus entender como e porque este evangelho faz o acréscimo intertextual no texto original de Marcos, e quais as implicações dessa alteração.
Falando agora apenas do conteúdo do Evangelho de Mateus, vemos que ele cita no interior desta perícope uma passagem incompleta de Zacarias (Zc 9.9), que é apenas parte da perícope original que trata de um contexto de guerra e até menciona a Grécia (Zc 9.9-17). Notamos mais uma vez que a apropriação que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento, seguindo uma prática comum à literatura de seu tempo, é exegeticamente reprovável. Isso, todavia, não deve nos servir como desmotivação à leitura. Temos que partir das limitações e práticas literárias do texto para compreender como o autor manuseou o material que tinha em mãos, e alcançar o seu conteúdo. Aqui, temos que guardar que o autor de Mateus tinha em mente um trecho de Zacarias que anunciava um “rei” que, aparentemente, em sua cerimônia de posse, entraria humildemente em Jerusalém montado num jumento. Tudo nos leva a crer que para determinados leitores essa passagem era um texto profético em relação ao Messias libertador de Israel, e provavelmente era apenas isso o que o autor do texto tinha em mente quando compôs a entrada de Jesus em Jerusalém a partir do Antigo Testamento.
Podemos dizer que o autor foi astuto ao recordar Zacarias e incluí-lo explicitamente na narrativa em que Jesus, chegando a Jerusalém, manda dois discípulos buscar dois jumentinhos no povoado que estava adiante (Mt 21.1-3). A profecia de Zacarias em sua leitura “cristianizada” é citada a seguir (v. 4-5), e funciona bem, como uma explicação para a atitude de Jesus. Pode até ser que o texto de Marcos já contivesse implicitamente a relação de intertextualidade com Zacarias, que neste caso, não seria uma citação, mas uma alusão (Lima, 2012, p. 111). Mateus estaria, se assim for, apenas deixando explícita a utilização do Antigo Testamento que já influenciara a narrativa sobre a chegada de Jesus a Jerusalém, provavelmente com o intuito de melhorar ou tornar mais acessível o texto marcano.
Na narrativa, os discípulos teriam de ir ao povoado e trazer a Jesus tanto a jumenta quanto o jumentinho, e aí o leitor concebe a existência de outro personagem, o dono dos animais. Embora esse “alguém” tenha que ser considerado como um possível impedimento para a realização da tarefa dos discípulos, Jesus, o destinador, já oferece antecipadamente o instrumento (objeto-modal), que neste caso são algumas palavras, que os faria superar o empecilho e realizar com sucesso sua missão. As palavras, literalmente traduzidas, são: “o senhor tem necessidade deles”. Se, segundo Jesus, com essas poucas palavras o dono dos animais seria convencido e permitiria que os discípulos os levassem, só podemos supor que no nível narrativo o dono dos animais compreenderia tais palavras e, consciente da profecia e do momento histórico, se converteria de adversário a ajudador, ou numa linguagem mais técnica, de oponente a adjuvante (Lima, 2012, p. 73). Assim, podemos dizer que a primeira parte desta perícope sobre a entrada de Jesus em Jerusalém começa com um problema, o de realizar expectativas messiânicas extraídas da leitura fragmentária de Zacarias na vida dos personagens. Jesus é o motivador, aquele que quer cumprir as escrituras e que incumbe seus discípulos de uma missão; os discípulos atuam neste caso como seus representantes, aventureiros que deveriam conseguir jumentos de estranhos. Todavia, Jesus não os enviou de qualquer maneira, mas lhes deu as “palavras mágicas”, que segundo nossa intuição, eram capazes de convencer o possível adversário, o dono dos animais, de que ele estaria contribuindo com a realização da profecia. Como vemos, tudo gira em torno dessa expectativa messiânica derivada da leitura que faziam de Zacarias, e Mateus, com sabedoria agora mais evidente, quis citar o texto do profeta exatamente aqui, no centro do enredo, quando os discípulos estavam para encontrar-se com o possível adversário.
Os versículos 6 e 7 mostram que tudo saiu como o planejado. Ainda que a narrativa não mencione o momento em que os discípulos encontraram os animais e talvez tenham conversado com o dono deles, ficamos sabendo que eles realizaram com sucesso seu dever, e Jesus pode montar nos animais antes de entrar na cidade de Jerusalém. A omissão daquele momento aparentemente importante no enredo, do encontro dos discípulos com os animais e seu proprietário, nos mostra que tal conflito era uma possibilidade apenas imaginada, e sua menção foi importante para que a narrativa fosse mais coerente enquanto imitação da vida; mas obviamente era mais importante falar que Jesus entrou em Jerusalém sob um jumento, em cumprimento da profecia de Zacarias, do que nos contar como foi que tudo aconteceu.
A ação de Jesus trazia o texto do Antigo Testamento à memória. Esse era o intuito do autor da narrativa marcana, e sua estratégia funcionou com o autor de Mateus. Internamente, o texto também evidencia quão forte e de fácil entendimento era a relação intertextual. Não só os discípulos e o possível dono dos animais entendiam o que Jesus estava fazendo, mas uma “grande multidão” viram a chegada de Jesus sob o jumento como o cumprimento da profecia messiânica, e por isso demonstraram sua alegria e reverência estendendo capas e ramos em seu caminho, enquanto recitavam o Salmo 118.26 que é uma exaltação pela vinda do “filho de Davi”, ou seja, pelo novo rei de Israel que vem em nome do Senhor (v. 8-9).
Muitos leitores falam desse texto que estamos lendo e da ampla aceitação de Jesus em Jerusalém em oposição à rejeição que o mesmo Jesus sofre mais adiante, quando é julgado e condenado à morte. Parece haver uma grande transformação na opinião da multidão, coisa que é difícil de explicar. Mas se a multidão exulta ao ver Jesus entrando em Jerusalém sob o jumento, é porque, ao menos no âmbito literário, o identificam com o Messias e rei que conceberam a partir de Zacarias. Todavia, Jesus não vai cumprir a profecia, não vai fazer explodir a guerra santa em Jerusalém, não vai trazer paz imediata ao mundo, não vai derrubar o império dominante... Jesus vai ser rejeitado pelos líderes religiosos, vai ser preso e humilhado pelo império, vai morrer crucificado sem demonstrar qualquer poder de reação; talvez por isso, aquela multidão passará a vê-lo como um falso messias, e com o mesmo entusiasmo com que o exaltou, o rejeitará. O messianismo de Jesus trilhou um caminho diferente do esperado, essa é a mensagem que a paixão de Cristo, que culmina com sua ressurreição, quer mostrar. Era natural que a multidão que esperava por um novo rei guerreiro se decepcionasse, que a memória de Jesus não fosse amplamente cultuada em Israel, e é exatamente aí que o discurso dos Evangelhos querem interferir, levando as pessoas a aceitar outra leitura das profecias messiânicas, leitura esta que encaixaria Jesus no papel. A culpa pela incompreensão do povo não será imputada sobre a má exegese que se praticava, nem sobre a própria multidão incrédula, mas sobre os líderes religiosos que tinham acesso às escrituras, que ensinaram o povo de maneira equivocada, e que por isso não reconheceram o ministério do Messias verdadeiro.
Mas a história da rejeição de Jesus em Jerusalém ainda está por vir. Nossa narrativa continua sob a expectativa de que aquele homem que entra na cidade montando num jumento era o Messias. Curiosamente, lemos nos últimos versículos (v. 10-11) um diálogo entre dois personagens coletivos: a multidão e a cidade. A multidão entendeu a encenação de Jesus, recebeu-o como Messias na entrada da cidade, mas a cidade em si parece curiosa, ignora a identidade de Jesus. Esta cidade de Jerusalém parece nunca ter ouvido falar do profeta da Galiléia, e talvez, por ser formada por sacerdotes, escribas, soldados, e pela aristocracia de forma geral, mostrar-se-á mais resistente a Jesus do que a multidão, que de alguma forma o acompanha desde o início.
Enfim, este texto que geralmente é chamado de “Entrada Triunfal”, na verdade mostra Jesus assumindo o papel de um Messias que é rei, mas que é simples; que é exaltado, mas que não possui a pompa de uma verdadeira realeza terrena. Outros estudiosos já ressaltaram que, diante desse gesto, era impossível não compreender que Jesus entrava em Jerusalém com pretensões grandiosas, e que por isso mesmo, tal entrada era o primeiro motivo para condenar Jesus por sedição. Esse tipo de leitura é bastante enfatizada por Richard A. Horsley e Neil A. Silberman, que contudo, erram por sempre imaginar de maneira fundamentalista, o significado dos reais atos de Jesus que teriam precedido a narrativa (2000, p. 83-84). Os autores parecem exagerar quando veem Jesus parodiando num teatro de rua as entradas triunfais praticadas pelas autoridades de seu tempo, ao passo que se esquecem dos evidentes convites para que leiamos o texto a partir de Zacarias. Nós vemos a narrativa, e não os possíveis fatos, e nos ocupamos mais com as explícitas relações entre as ações dos personagens e a profecia do Antigo Testamento do que com as hipóteses de que Jesus estivesse fazendo tudo apenas para deslegitimar os poderes de então.

Um comentário:

Wilma Felix disse...

Gostei muito dessa reflexão
sobre a entrada de Jesus em Jerusalém