terça-feira, 22 de maio de 2012

TEOLOGIA E LITERATURA BÍBLICA: UMA INTRODUÇÃO (Parte 5)


A Bíblia de Hoje e sua História
A Bíblia é uma verdadeira biblioteca composta por dezenas de livros antigos, e como acontece com toda fonte literária antiga, sua própria história (a sucessão de tempos e eventos) traz dificuldades e tradições que vão além do próprio texto; falo aqui de particularidades como as da sua preservação, tradução e uso. Abordar essa história é importante para que saibamos tratar de alguns dos fundamentos das leituras dogmáticas e fundamentalistas, como a ideia de que o texto bíblico é como divinamente inspirado, e consequentemente, perfeito. Sob esta ótica os textos bíblicos devem ser coesos, inteligíveis, e ter um enunciado capaz de se comunicar universalmente, isto é, relevante em todas as épocas e culturas. Mas será que tais reivindicações correspondem à história dos textos? Será que a leitura, livre dos condicionantes dogmáticos, confirma essas alegações cristãs sobre a Bíblia?
Permitam que eu fale rapidamente da origem e preservação dos textos bíblicos, partindo da afirmação de que não existem originais desses textos. Por conta de fatores comuns, como a própria fragilidade dos materiais utilizados para a escrita (folhas de papiro, pergaminhos, tábuas de argila...), o mundo antigo não nos deixou ter em mãos qualquer carta paulina ou evangelho em sua versão original. Em sua origem, todos os textos bíblicos eram apenas textos, livres do status de “Escritura Sagrada”; eles foram usados normalmente, aprovados pelo uso comum, copiados, reeditados, corrigidos, e com o prestígio que atingiram ao longo deste complexo processo histórico, chegaram a fazer parte do que chamamos de “cânon”. Assim, geralmente reconhecemos intervalos de centenas de anos que separam a autoria de um texto em sua primeira versão, e a sua eleição como texto sagrado.
Um problema inevitável deste processo de canonização é que, antes da canonização de um texto e da exigência para que o mesmo seja preservado e corretamente copiado por profissionais, o prestígio do texto naquele círculo sócio-religioso já havia não apenas destruído o autógrafo, como produzido inumeráveis cópias. O processo de cópia manual de um texto neste período legava às gerações futuras várias versões do mesmo texto, que era corrigido, melhorado, abreviado, comentado, ou que recebia erros involuntários mesmo. Assim, desde a canonização, a busca pela cópia mais próxima do “original” toma seu lugar. Hoje, há milhares de manuscritos do Novo Testamento diferentes, produzidos ao longo de séculos por copistas de vários lugares, e é simplesmente impossível determinar com precisão qual versão dentre as centenas disponíveis, é a mais fiel à origem. Há muitos pesquisadores que lidam com tais textos, comparando letra por letra, avaliando a qualidade da cópia, o lugar e época de cada manuscrito, e emitindo juízos sobre qual versão deve ser a mais original. Esta tarefa é chamada de “crítica textual”, e é ela quem nos oferece uma versão do Antigo Testamento em língua hebraica (Bíblia Hebraica Stuttgartensia, atualmente em sua 4ª edição) e do Novo Testamento em grego koinê (o Novum Testamentum Graece, que já em sua 27ª edição), que são eventualmente atualizados e servem como base para as traduções da Bíblia para todos os idiomas modernos.
Chegamos aí a outro problema, que é a tradução do texto bíblico ao português. Sabemos que todo processo de tradução, por mais competente que seja, é incapaz de produzir um texto final que corresponda perfeitamente ao texto inicial; ainda mais quando estamos falando de idiomas tão distantes e diferentes. Os tradutores da Bíblia tentaram por muitos anos produzir versões que correspondessem ao texto em sua língua nativa, mas além das discordâncias naturais entre estas versões, o resultado deste trabalho mostra-se ineficaz para a grande maioria dos leitores. Algumas Bíblias brasileiras são realmente difíceis de ler, contam com vocabulários pouco usuais, e diminuem o interesse do leitor comum que acaba delegando esta leitura aos “profissionais”, isto é, aos líderes religiosos. A reforma protestante não alterou o dogma cristão que aceita a Bíblia como mensagem divina, mas exigiu o direito de traduzir a Bíblia a qualquer idioma e de tornar os textos acessíveis aos fieis, evitando assim os abusos daqueles que sempre exerceram o papel de intermediários entre Deus e os homens. Todavia, mesmo tendo acesso à Bíblia em português, o fenômeno da “terceirização da fé” não foi extinto, e parte disso se deve à complexidade das traduções brasileiras, e à má formação básica dos leitores.
Atualmente há uma tendência por se produzir novas traduções que aproximam a linguagem do texto bíblico àquela usada pelos leitores. Hoje, por exemplo, os brasileiros raramente conjugam corretamente os verbos em segunda pessoa, e já existem versões que modificaram o texto bíblico no mesmo sentido. Mas esta notícia não é tão boa quanto pode parecer; ao se produzir uma versão deste tipo (partindo do princípio da equivalência dinâmica), os tradutores buscam substituir conteúdos que são ininteligíveis no texto grego e hebraico, e atualizar algumas expressões; lidando assim com o texto, os tradutores ficam mais livres para transformar o texto, impondo nele suas próprias leituras, e por vezes, suas afirmações dogmáticas. Daí, frases que parecem erradas são transformadas em outras, e pontos que possivelmente refletem religiosidades politeístas são cristianizados.
Como vemos, não temos mesmo uma versão ideal de Bíblia, e nem poderemos ter. Continuarão surgindo novas traduções, com as quais, o estudioso deve lidar conjuntamente. Logicamente, é sempre preferível analisar as narrativas bíblicas a partir dos idiomas originais, o que ao menos eliminam uma parte do problema. Enfim, temos novos motivos para evitar leituras dogmáticas, incentivos para procurar ler a Bíblia criticamente; está indicado aqui um caminho para aqueles que desejam utilizar a Bíblia como de partida para o discurso teológico.

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