sexta-feira, 25 de maio de 2012

MITOLOGIA BÍBLICA (Verdade ou Mentira?)


Nos aproximando de nossos objetivos, dedicaremos uma seção à discussão sobre o mito, o que nos levará ao texto bíblico, às teologias dos povos antigos (e modernos). Começo com essa pergunta: o mito é uma mentira? Pelo menos é assim que popularmente o mito é entendido, como um sinônimo de história falsa. Muitos de nós lembram de imediato da mitologia grega com suas fantásticas narrativas sobre deuses e deusas, e tendo tais fábulas em mente o homem moderno com suas preferências científicas recusa-se a levar tais narrativas a sério. Quando o assunto é a literatura bíblica, os leitores se dividem: Aqueles que olham para a Bíblia apenas como um livro, uma produção cultural do mundo antigo, não hesitam em lhe aplicar os mesmos critérios da literatura grega e declarar ser a Bíblia um “livro de mitologias”; mas aqueles que a recebem como texto sagrado, como livro normativo para sua fé e prática, recusam tal abordagem. Deveras é difícil para o homem moderno se guiar por narrativas ficcionais, e assim se dá a encruzilhada. A Bíblia adquire o status de livro histórico para quem a quer como “Palavra de Deus”, ou como livro mitológico para quem a quer meramente como literatura.
Nota-se que estamos trabalhando sobre um campo de conhecimento não meramente científico, mas também religioso, o que torna a discussão sempre mais difícil. Mas nos voltemos para a tarefa de definir melhor o que é o mito e o que é história, na esperança de que tais definições finalmente nos conduzam a uma solução razoável para o suposto impasse.
O mito (do grego mythos) possuía em sua origem um sentido bem distinto daquele hoje praticado. Em sua Poética, Aristóteles tratava da natural compulsão humana pelo “imitar” (cap. IV), e o mito foi definido como o desenvolvimento dessa imitação em forma narrativa; noutras palavras, o mito é na Poética um “sistema de atos” reunidos com o objetivo de registrar o mundo sob a forma narrativa (cap. VII). Fazer mitologia seria então se utilizar dos instrumentos necessários para construir um “enredo” (Gazoni, 2006, p. 60), sem que isso defina a que tipo de narrativa se quer construir. A história, por outro lado, pode ser definida como um tipo específico de narrativa, onde o autor não somente desenvolve um enredo, mas procura se fundamentar em fatos verídicos, assim caracterizados através de uma investigação mais criteriosa. Como consequência dessa distinção, o mito foi ganhando novas conotações e passou a ser usado para definir as narrativas não históricas, aquelas que foram construídas sem qualquer critério científico, e que permitem voos imaginativos.
Em recente palestra no IV Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica da ABIB, realizado em Setembro de 2010, o estudioso do Novo Testamento Leif E. Vaage definiu a mitologia para nossos dias dizendo que ela se refere à construção de relatos de coisas que não podem ser mensuradas. Isso mantém o caráter de construção narrativa que o mito possuía em sua origem, mas o distingue das construções que utilizam-se de critérios científicos produzidos pelo homem de hoje. Entendemos assim, porque atualmente a literatura do mundo antigo é definida como mitologia; são produções literárias de um tempo em que ainda não haviam sido desenvolvidos meios tecnológicos de pesquisa ou critérios científicos de julgamento. Não se admira que o cientista de hoje venha a classificar a Bíblia como literatura mítica.
Entretanto, há um problema nessa maneira de diferenciar mito e história. O mito passou a ser visto como a narração de mentiras porque a história tomou para si o status de verdade, mas essa ideia de que a história é a verdade está superada atualmente, e exige que reformulemos nossas definições. Para começar, temos que nos ater ao fato de que quando alguém pretende escrever história, ainda que se utilize de métodos mais científicos para colher informações, interpretá-las e uni-las numa narrativa, está também desenvolvendo um enredo que não pode retratar a realidade. Fazer história é um processo de pesquisa, interpretação e criação. Teríamos que levar em conta o talento do historiador, sua formação, seu empenho, seus métodos, seus pressupostos e influências... São muitos os aspectos que tornam indeterminado o nível de realidade que uma narrativa histórica é capaz de transmitir. Mesmo que se aproxime mais dos fatos originais por uma criteriosa investigação, e atenda às exigências técnicas da racionalidade moderna, o resultado do trabalho do historiador será sempre uma leitura pessoal dos fatos.
As narrativas historiográficas mais antigas são hoje desprestigiadas pelos historiadores por sua excessiva ênfase nas grandes realizações de reis e imperadores, negligenciando a história da grande maioria da população que não tiveram seus nomes listados nas crônicas imperiais e nem deixaram grandes documentos ou edifícios para que os estudássemos. É tendência na historiografia atual dar mais valor à história social, ou mesmo à “história das mentalidades” reconstruindo parcialmente mundos que os livros antigos não nos deixam ver (Burke, 2008, p. 157-158). No posfácio de O Fio e os Rastros, o historiador Carlo Ginzburg trata da diferença entre um relato que tradicionalmente se chama história e os romances, que geralmente são vistos como relatos fictícios (2007, p. 311-335). Ginzburg fala de como o romancista de maneira transparente preenche as lacunas históricas, ou seja, cria informações para ocupar os espaços que a pura análise de documentos não foi capaz de ocupar. Ginzburg compara tal técnica criativa com o trabalho dos historiadores, que faziam o mesmo, mas que produziam narrativas menos interessantes, mais incompletas, e que não eram tão honestos quando também preenchiam com a própria criatividade os buracos históricos. A pergunta que a leitura do texto de Ginzburg nos deixa é esta: será que os romancistas do passado, em suas ficções que retratavam a vida cotidiana através da imaginação, não estiveram mais perto da realidade histórica da maioria da população do que as crônicas reais nos permitiram chegar?
 Concluindo essas breves considerações teóricas, poderíamos dizer que para uma aplicação correta dos conceitos, a distinção entre mitologia e história não deve ser entendida como uma oposição entre mentira e verdade. A mitologia retrata tanto fábulas e histórias fantásticas, quanto procura retratar a verdade que não se pode constatar cientificamente, mas que é realidade na construção de mundo e identidade de quem a produz. De maneira semelhante, a história tanto pode nos contar com razoável precisão coisas que aconteceram, como pode nos fazer acreditar em ficções ao conduzir nosso pensamento com base numa interpretação equivocada do passado. O importante é estar ciente de que em ambos os casos, realidade e ficção se misturam, e é uma tarefa árdua (e no caso da interpretação bíblica quase sempre desnecessária) tentar distinguir entre uma e outra.

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