sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O DIABO E OS EVANGÉLICOS – “DEIXADOS PARA TRÁS”

O primeiro tópico de nossa exposição é de caráter cinematográfico. Vamos falar de algumas representações do mal a partir da série de filmes intitulados “Deixados para Trás” (Left Behind), inspirados numa série de 13 livros de Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins. As obras de ficção se inspiram em passagens bíblicas que falam sobre o fim apocalíptico do mundo, e na versão cinematográfica (apenas três filmes foram filmados, deixando a série incompleta em sua versão para o cinema), o direcionamento ao público evangélico é declarado até na escolha dos atores, em sua maioria, cristãos evangélicos, como podemos ver ao assistir os “extras”. 

Embora a classificação dada aos livros e filmes seja “ficção”, não é bem assim que os evangélicos o recebem. A ampla aceitação dos filmes de “Deixados para Trás” se explicam porque eles retratam em grande medida a interpretação que a maioria das igrejas evangélicas de hoje dão para os textos bíblicos referentes ao fim dos tempos. Como em romances, os filmes narram a história de personagens fictícios, mas eles vivem durante os últimos dias, que são construídos segundo um imaginário evangélico já bem desenhado. Parte dos conflitos se dá na necessidade de crer (ou converter-se), e na divisão entre familiares de confissões de fé distintas. Dentre os eventos que poderíamos considerar apocalípticos, temos o “arrebatamento da igreja”, a “ascenção do Anticristo”, a “grande tribulação”... Portanto, “Deixados para Trás” usou a escatologia evangélica como cenário para um romance, e imediatamente foi recebido e usado como um instrumento para alcançar os não-evangélicos e para educar os evangélicos. Os autores leram a tradição sob uma ótica norte-americana, empregaram-na na composição da série, e por isso os filmes podem ser analisados como uma leitura, uma recepção evangélica destas tradições apocalípticas, e propagador dessas mesmas leituras entre os evangélicos brasileiros.

Antes de fazermos nossas considerações, vamos comentar algumas cenas, e a primeira delas selecionamos do primeiro filme. Trata-se de uma oração de Buck Williams, o repórter que é um dos protagonistas.[1] Ele fora convidado para uma reunião entre Chefes de Estados, e descobre que quem o convidou é o Anticristo, que quer fazer do influente repórter seu assessor de imprensa. Porém, antes da reunião, ele faz uma oração, que representa o ritual de conversão evangélica, onde se declara a fé em Jesus Cristo como salvador, e a dependência a ele. Aí temos a força evangelística do filme, pois não restam dúvidas de que o apelo em cenas como essa, que se repetem algumas vezes em cada filme, é principalmente para motivar a conversão dos eventuais telespectadores não evangélicos.

A seguir Buck entra na sala de reunião, e Nicolai Carpathia, o personagem que é o Anticristo, dirige a reunião.[2] Temos alguns pontos a destacar desta cena: Para começar, vemos aqui uma imagem do mal personificado bastante interessante, a do líder político que governa o mundo com o intuito de afastar as pessoas de Deus. Temos também a menção do plano de 7 anos de poder do Anticristo, período que tem início com o arrebatamento e termina com a vinda de Jesus Cristo para pôr fim ao seu domínio. Ainda podemos ver uma paródia do “discurso de envio” de Jesus em Mateus capítulo 10, mas aqui, o Anticristo faz dos líderes políticos seus servos, que são enviados para governar o mundo em seu favor. No final desta cena, dois homens que são banqueiros e que trabalham por elevar Nicolai ao poder por interesses econômicos, são traídos e assassinados. Nicolai demonstra poderes sobrenaturais e assim se faz temível, conhece a vida pessoal de um segurança que está presente, manipula a mente das pessoas, e demonstra não ter escrúpulos. Aí voltamos àquela oração de Buck; no enredo ela mostra-se decisiva, pois ao colocar-se sob o senhorio divino, o repórter esteve protegido dos poderes do Anticristo durante a reunião. Ele não tem a mente controlada como os demais presentes, e é o único capaz de se lembrar dos ocorridos; quer dizer, que se tornar um “evangélico” o salvou do mal.

Fazendo uma pausa na apreciação do filme, sabemos estudiosos das ciências sociais com o olhar voltado para os movimentos religiosos já constataram há muito que, no conflito entre diferentes grupos e crenças, um fenômeno comum é a “demonização” do outro (Silva, 2011, p. 127-128), que é uma espécie de depreciação aos rivais que hoje é considerada uma característica típica de movimentos chamados “fundamentalistas” (Oro, 1996, p. 127-129). Para Erving Goffman (1988, p. 7-15), o “outro” (que pode ser uma categoria individual ou coletiva) é reconhecido como diferente quando possui uma ou mais características (que formam sua identidade social real) que diferem das características esperadas ou tidas como ideais (que constituem a identidade social virtual). Por conta dessa diferença, que pode assumir inúmeras formas, o “outro” é rejeitado, e pode passar a sofrer discriminação ganhando atributos depreciativos, como é o caso da identificação de um suposto adversário com o demônio. Dizemos que este “outro” é um indivíduo estigmatizado. Olhando por outro lado, os males sofridos por um grupo cujo vínculo interno é essencialmente religioso, podem facilmente ser atribuídos aos seus supostos inimigos, sejam eles físicos ou não, e no discurso deste grupo, homens e demônios podem mesmo se misturar. Assim, para o “nós”, resistir ao “eles” pode ser o mesmo que resistir ao diabo.

Pensando agora novamente nas cenas que vimos, diríamos que elas constroem verdadeiras barreiras identitárias, impõem regras para que alguns dos “eles” passem a ser “nós”, estigmatizam os demais, especialmente os líderes políticos, fazendo-os seres manipuláveis pelo Anticristo. Assim, no imaginário evangélico sobre o mal é importante notar que o mundo se divide em apenas duas partes, os cristãos e os outros, e que Satanás e seus demônios, cujo poder exercem temporariamente sob a permissão divina, encontram nesses outros alvos fáceis, e além dos prejuízos pessoais que este domínio maligno pode acarretar, existe a preocupação com os efeitos mundiais, políticos, econômicos... Este filme serve como um exemplo de que para os evangélicos, o mundo é mal, está destinado à perdição, e os cristãos é que são “extra-terrestres”, habitantes do céu que vivem momentaneamente neste caos. Esta é uma visão pessimista que inevitavelmente provoca em certos círculos evangélicos uma inércia, em que é melhor orar e esperar por Deus do que agir contra as injustiças e desumanidades. 

Passemos para a próxima cena a comentar, agora no segundo filme, quando o Anticristo assume o poder por aclamação e faz seu discurso de posse que é televisionado.[3] Ele demonstra possuir controle sobre a economia mundial, diz lutar contra o desarmamento, já que a partir daí as fronteiras deixam de ter importância enquanto todos estão sob o mesmo governo. O Anticristo (Nicolai Carpathia) pede o fim das diferenças, em especial da religiosa. De maneira caricata o Anticristo do filme cita textos bíblicos como Mateus 6.13, mas em vez de dedicar a Deus o reino, o poder e a glória, diz que os mesmos agora estão nas mãos dos homens. A religião, no discurso, é desnecessária, um tipo de fenômeno típico de um mundo antiquado, o motivo para as discórdias, diferenças e guerras. 

Nesta cena vemos principalmente como são demonizadas as iniciativas ecumênicas, o que é natural ao discurso evangélico brasileiro. Para eles, tais tentativas de acabar com as diferenças religiosas em nome da paz fazem com que os homens se esqueçam do anúncio bíblico de um juízo vindouro, que separará uns para o céu e outros para o inferno. O ecumenismo vai negar a necessidade de “conversão”, de arrependimento, ou melhor dizendo, a necessidade de seguir os dogmas evangélicos, que são o caminho para a salvação. Novamente fica evidente quão importantes são as fronteiras identitárias para os evangélicos, e quão certos eles estão de que só eles possuem a “verdade”. 

Vamos encerrar esta seção falando de uma análise mais profunda feita de “Deixados para Trás” numa dissertação de mestrado que tem como tema a crença do arrebatamento da igreja (Sebastião, 2010).[4] A autora faz um trabalho exegético sobre 1Tessalonicenses 4.13-18 e Apocalipse 20.1-6 (2010, p. 76-107), chegando assim às suas próprias conclusões sobre os textos e sobre a suposta ideia de um “arrebatamento” nas páginas da Bíblia. Todavia, ela não pára por aí, e dedica boa parte de sua pesquisa à análise da recepção, estudando o papel do protestantismo norte-americano no estabelecimento de novas ideias supostamente bíblicas sobre o arrebatamento nas igrejas brasileiras. Ela faz essa pesquisa resenhando livros que influenciaram o desenvolvimento dessa teologia nas nossas igrejas (2010, p. 30-47), e num capítulo aborda também o filme “Deixados para Trás”, que apresenta a crença no arrebatamento numa leitura muito popular, demonstrando muitos dos elementos ideológicos dos protestantes da América do Norte expressos no filme (2010, p. 48-49). A conclusão é que estas ideias religiosas relacionadas ao arrebatamento que hoje encontram ampla aceitação no Brasil de confissão evangélica, são formulações recentes que não são encontradas em qualquer texto bíblico quando os abordamos exegeticamente; na verdade, estas ideias são criações extraídas da leitura fragmentária e ingênua dos textos bíblicos, ideias que nasceram por diferentes motivações na América do Norte, e que depois passaram a ser defendidas como a verdadeira interpretação das “profecias” em diferentes culturas.



[1] Acesse o vídeo a partir do link (http://www.youtube.com/watch?v=ZXCiVEd9HDo), e veja a cena aos 4 minutos e 30 segundos.

[2] A cena começa exatamente após a anterior, mas só termina aos 5 minutos de outro vídeo, que pode ser acessado através do link: http://www.youtube.com/watch?v=6vG9XeSJOF8&NR=1

[3] Assista a cena em questão aos 6 minutos e 40 segundos do vídeo no link a seguir: http://www.youtube.com/watch?v=QStvxk_0g6I

[4] A dissertação de mestrado citada pode ser baixada em pdf a partir do link: http://ibict.metodista.br/tedeSimplificado/tde_busca/processaPesquisa.php?listaDetalhes%5B%5D=780&processar=Processar

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