quarta-feira, 30 de março de 2011

JESUS É OU NÃO É DE NAZARÉ? MATEUS 2.19-23

A história da infância de Jesus chega ao final em Mateus 2.19-23. Nos versículos 19 e 20, o anjo volta a aparecer a José em sonho, dizendo-lhe que Herodes, que procurava matar Jesus havia morrido e que eles poderiam voltar à sua terra natal. Literariamente, Mateus é fiel à sua estratégia. José continua sendo o personagem ativo, quem recebe as mensagens, quem toma as decisões, quem conduz os caminhos do menino Jesus.


A volta de Jesus do Egito, como já dissemos ao comentar os textos anteriores, é uma referência simbólica a Moisés, que quando nasceu escapou à milagrosamente e foi criado no Egito. De lá, veio o libertador e legislador Moisés para tomar posse da terra de Canaã; também é do Egito vem o novo libertador e legislador de Israel (v. 21). Porém, há algo estranho na narrativa. Quando chegam na sua terra no sul de Israel (Judéia), a família fica sabendo que Arquelau, o filho do antigo Herodes Magno, estava governando a região (v. 22). José teve medo de voltar a Belém, e outra vez, o anjo lhe fala por meio do sonho para que vá para o norte do país, para a Galiléia; mais especificamente para a cidade de Nazaré (v. 23a). Temos que dizer que o argumento para esta mudança territorial é estranho. Historicamente falando, é verdade que o filho de Herodes, Arquelau, assumira o controle da Judéia depois da morte do seu pai. Ele foi o Etnarca da Judéia de 4 a.C. até 6 d.C. Porém, a fuga para a Galiléia não livra a família desta ameaça, como o texto pretende dizer, pois a Galiléia estava também sob o domínio de outro filho de Herodes, o famoso Antipas, que foi Tetrarca da região de 4 a.C. até 39 d.C.


Arquelau não durou muito no poder, foi deposto e o controle da Judéia passou a ser exercido diretamente pelos romanos. Tanto, que nos dias da morte de Jesus quem governava a região era o romano Pôncio Pilatos (26-36 d.C.). Mas Antipas, que herdou o domínio da Galiléia, ficou no poder por décadas, e nós ainda ouviremos falar dele como o Herodes que mata o profeta João Batista no capítulo 14. Mais estranho ainda, é que esse mesmo Herodes Antipas tinha fixado a sua capital na cidade de Séforis, na Galiléia. Séforis, embora não seja mencionada nos evangelhos, era na época a maior cidade da Galiléia, onde a presença imperial romana e a cultura grega eram mais presentes. E o mais curioso: Nazaré, para onde foge a família de Jesus, ficava a cerca de quatro quilômetros de distância de Séforis. Há até uma hipótese de que José e Jesus, como artesãos (o grego tekton pode referir-se a diferentes atividades manuais com ferro, madeira ou pedra), não teriam como exercer sua profissão em Nazaré, uma pequena aldeia de camponeses, mas provavelmente prestavam serviço à cidade de Séforis (Lima, 2010, p. 8-9). Então, é muito estranho o que nos diz o texto bíblico, que a família de José fugiu para a Galiléia por medo de Agripa, sendo que eles tornaram-se vizinhos do irmão dele, Antipas.


A verdadeira explicação para essa suposta fuga é outra, e está expressa no versículo 23b. Lemos que mais uma vez, o autor de Mateus acredita que tal fuga possui base bíblica. Na suposta profecia, o Messias deveria ser conhecido como Nazareno. O problema é que esta profecia simplesmente não existe em nossas Bíblias. Pode ser que o autor esteja citando uma tradição oral, ou uma versão que nós não conhecemos mais, ou pode ser que tenha entendido mal a leitura que algum dia ouviu na sinagoga. Lembremos que no mundo antigo ninguém tinha Bíblia para consultar em casa, e que estas citações, além de estarem baseadas na leitura de uma tradução do Antigo Testamento para o grego, a Septuaginta, eram feitas de memória. Enfim, parece haver um erro na citação mateana.


Para fechar a questão, o que nos parece realmente é que Jesus nascera em Belém apenas literariamente, ou seja, a história do seu nascimento na Judéia foi criada para atender às expectativas messiânicas de este seria um rei como Davi. Porém, a tradição preservava uma versão mais real, a de que Jesus nascera mesmo em Nazaré. O evangelista precisou reunir as duas versões, a histórica e a mítica, e ao fazê-lo, cria motivos estranhos para que Jesus vá de um lugar para outro. Apesar das incompatibilidades narrativas, esta versão tranqüiliza o autor, que pode chamar seu senhor por Jesus de Nazaré, ao mesmo tempo que crê nele como um novo rei davídico. Para ele, está explicado porque tanta gente chamava Jesus de nazareno, enquanto que o Messias, como sabiam, devia nascer em Belém.



Referência Bibliográfica


LIMA, Anderson de Oliveira. Roma e os Camponeses da Galiléia: Os Motivos que Proporcionaram o Nascimento do Movimento de Jesus de Nazaré. In. Revista Jesus Histórico, n. 4, vol. 1. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010, p. 1-14. Disponível em

segunda-feira, 28 de março de 2011

NOVO ARTIGO PUBLICADO


Volto a escrever para divulgar a publicação de um novo artigo meu, desta vez na Revista Orácula n. 11, que trabalha temas relacionados ao misticismo judaico e métodos de leitura. Meu artigo é um exercício que aplica a “narratologia” na interpretação de Atos 5.1-11, o texto que fala sobre a morte de Ananias e Safira.



O artigo pode ser baixado em pdf no site da revista: www.oracula.com.br

terça-feira, 22 de março de 2011

NOVO ARTIGO PUBLICADO


Costumo sempre divulgar no blog, não apenas os textos mais breves que escrevo especialmente para este meio de comunicação, mas também anuncio aos meus leitores a publicação de artigos acadêmicos. Desta vez, quero divulgar a publicação de um novo artigo meu intitulado “O Casamento de Jesus: Um Enredo do Antigo Testamento na Construção da Narrativa de João 4”. O artigo trata do emprego de um padrão de linguagem do Antigo Testamento na construção da história do encontro de Jesus e da mulher samaritana. A estrutura da narrativa segue os passos de um casamento, e um leitor atento, que conhece bem as histórias de casamento do Antigo Testamento, fica cada vez mais convencido, durante a leitura, de que no final Jesus vai se casar com a mulher samaritana. Claro que isso não acontece, é uma “pegadinha” do autor, que acaba fazendo Jesus “casar-se” com todos os samaritanos de fé.

Infelizmente, o site da PUC-Minas, publicadora da Revista Horizonte, não disponibilizou dois artigos para o leitor em PDF, dentre os quais, está o meu. Assim, até o momento, esse artigo de que gosto tanto só é acessível para aqueles que encontrarem a revista em sua forma impressa. Caso isso mude, informarei a todos aqui pelo blog. Por enquanto, a referência exata para quem quer procurar o artigo é:

LIMA, Anderson de Oliveira. O Casamento de Jesus: Um Enredo do Antigo Testamento na Construção da Narrativa de João 4. In. Revista Horizonte, v. 8, n. 19. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte, 2010, p. 138-152.

JESUS É O NOVO MOISÉS: MATEUS 2.13-18

Leia mais essa passagem de Mateus e note que José continua dominando a narrativa, guiando o menino Jesus e orientando-se a partir dos desígnios divinos. Como já dissemos, ele é, em Mateus, bem mais importante que Maria. Agora, o anjo lhe diz para que fuja para o Egito com a família, a fim de livrar o menino Jesus da violência de Herodes, que ainda planejava matar o suposto futuro rei dos judeus (v. 13). José, claro, faz o que o anjo manda, e fica no Egito até que Herodes morre (v. 14).

Aqui, como de costume, Mateus inclui uma citação do Antigo Testamento que lhe parece relacionada à vida de Jesus. Outra vez, ao citar Oséias 11.1, Mateus lê o texto desconsiderando seu significado primevo; ele nem mesmo menciona que Jeremias falava do êxodo, da saída do Egito, mas vê apenas a volta de Jesus do Egito, como um novo libertador semelhante a Moisés. Novamente, o texto é lido a partir da perspectiva exclusiva do leitor, a despeito de seus significados históricos.

É bom aproveitar a ocasião para ver que há uma costura de perícopes neste ponto do evangelho. Nos versículos 13 a 15 temos um texto completo, com uma citação do Antigo Testamento que completa a idéia. Herodes já morreu, o menino Jesus já pode voltar, mas o evangelista une a essa passagem outra em que Herodes Magno ainda vive, a fim de tornar sua narrativa mais completa. A narrativa retrocede cronologicamente, deixando-nos ver um problema de coesão. Passemos então a esta segunda parte, que segue a mesma estrutura com uma breve narrativa e uma citação bíblica como conclusão.

Herodes, ainda vivo, manda matar todos os meninos de dois anos para baixo em Belém e nas proximidades (v. 16). Jesus, como sabemos, já não está na região, fugiu para o Egito, para que de lá voltasse, simbolicamente, como um novo Moisés libertador. Nem vem ao caso se esta matança de crianças realmente aconteceu na história; no texto, ela é importante porque mais uma vez nos faz lembrar de Moisés, que por pouco livrou-se da morte quando o faraó ordenou que matassem os meninos hebreus, em Êxodo 1. A mensagem não precisa de comprovação histórica, pois tem o objetivo de anunciar Jesus como um Messias mosaico, e trabalha com uma perspectiva intra-textual, fazendo-nos viajar pelas histórias da Bíblia.

Uma nova citação de Jeremias 31.15 fecha a perícope. Uma leitura rápida desta passagem de Jeremias e dos versículos subseqüentes é suficiente para nos revelar que mais uma vez Mateus não faz uma grande exegese. A Raquel é simbólica, e chora por seus filhos por conta do exílio babilônico; Mateus aplica esta passagem à morte dos meninos em Belém.

A conclusão que podemos tirar dessas duas passagens é a seguinte: o evangelho de Mateus quer nos convencer de que Jesus é o Messias, fazendo-o semelhante a Moisés. Vemos que esta é mais uma característica de sua própria expectativa messiânica, a de que o Messias seria como Moisés. Os sinais para que o identifiquemos desta forma estão aí: Jesus é perseguido no nascimento, como Moisés; Jesus escapa da morte no Egito, e de lá sai como um libertador para a sua nação, como Moisés.

sexta-feira, 18 de março de 2011

A TERCEIRIZAÇÃO DA FÉ



Ontem, numa aula do doutorado, o professor que conheci recentemente, Dr. Rui de Souza Josgrilberg, comunicou-nos algumas palavras que achei que poderia transmitir aos leitores deste blog. A aula era sobre um texto difícil de Paul Ricœur, mas o que entendi mesmo foi o que ele disse sobre um fenômeno que atinge as igrejas protestantes desses nossos dias. Vou então resumir com minhas palavras o que disse o professor, e depois, quem sabe, acrescentar algumas reflexões próprias.

Segundo Josgrilberg, os cristãos de hoje têm terceirizado, a exemplo do que têm acontecido no mundo corporativo, a própria experiência religiosa e a leitura da Bíblia. Embora a reforma protestante tenha nos legado o direito de ler a Bíblia pessoalmente, em nossa língua, em diferentes traduções, e com preços bem acessíveis, os cristãos do século XXI não usufruem deste direito, e deixam por conta dos pastores a tarefa de escolher os textos, lê-los, e interpretá-los. É verdade, grande parte dos cristãos não lê a Bíblia a não ser pequenas porções que são lidas coletivamente nos cultos. Eles preferem acreditar que o pastor é mais apto para tal tarefa e que o que ele lhes transmite é correto e suficiente. Isso, obviamente, é um engano. A Bíblia não está sendo bem lida, bem interpretada e transmitida; na verdade, de maneira consciente ou inconsciente, os líderes religiosos acabam por utilizar-se dessa exclusividade no acesso às Escrituras para manipular o povo crédulo.

Digo sempre as pessoas, mesmo aquelas que lêem a Bíblia, na verdade não e ouvem. Acontece que as igrejas em geral possuem já suas próprias interpretações, e fazem questão de ensiná-las a todos, com a intenção de auxiliá-los no seu caminhar cristão. Todavia, essa ajuda é também a maneira de não permitir que nós tenhamos acesso ao texto diretamente, há sempre esse filtro, essa interpretação “oficial” se interpondo entre nós e o texto, e nos impedindo de ouvir a verdadeira voz do texto. Neste caso, eu levo mais adiante a crítica do Dr. Josgrilberg, pois além daqueles que delegam ao pastores a interpretação do texto, também considero quase sempre inútil a iniciativa dos cristãos quando lêem a Bíblia e permanecem vendo nela aquilo que antes ouviram da igreja. As postagens recentes sobre os textos de Mateus, pretendem exatamente testar e ensinar os cristãos, para que leiam a Bíblia diretamente, com transparência e honestidade, sem preconceitos, sendo capazes de exprimir opiniões pessoais sobre o que o texto lhes parece, mesmo quando essas impressões contrariam a fé evangélica.

Mas as palavras do meu professor também falavam da terceirização da “experiência religiosa”. Eu vou definir isso de maneira bem simples, como as experiências que temos com Deus, seja qual for nossa fé. Estados alterados de consciência, oráculos, expressão de dons espirituais, possessões, sensações de toque pessoal ou audições de palavras não humanas... tudo isso pode ser experiência religiosa. Estas, que para mim, são as verdadeiras razões para que alguém creia nalguma coisa, também são terceirizadas hoje em dia. Muitas pessoas não encontram Deus em casa, nas suas orações, nas suas meditações, em cultos particulares; elas preferem esperar pelo domingo, para que a música da igrejas lhes comova, para o pastor, com mais encenação do que conteúdo, lhes emocione. São necessárias campanhas, vigílias, rituais e mais rituais, todos com o propósito de proporcionar experiências religiosas para cristãos dependentes.

Entendo a Bíblia como parte fundamental da minha fé, da minha vida religiosa. Sou apaixonado pelos princípios que dela aprendi e ainda guio-me por suas palavras, ainda que não as entenda como as igrejas entendem. Mas acima disso, eu também acredito, e defendo sempre diante dos meus alunos e amigos, que os alicerces da fé não estão no conhecimento, em provas, na razão, e nem mesmo nos texto Bíblicos, mas nas experiências religiosas pessoais que temos. Até a Bíblia, quando lida sem esta experiência, é apenas um livro antigo, motivo pelo qual incentivo a busca pessoal por Deus, sem moletas, sem auxílios eclesiásticos, sem métodos teológicos. Acho que não devemos permitir que as experiências e interpretações de outros, que não são em nada superiores, guiem nossa fé. Essa liberdade é um direito nosso, do qual não devemos abrir mão.

terça-feira, 15 de março de 2011

OS MAGOS E O MESSIAS DAVÍDICO: MATEUS 2.1-12

Nossa leitura do evangelho de Mateus, como já se pode notar, não é tão exegética quanto poderia ser. Não estamos trabalhando os textos em todos os seus detalhes e nem pesquisando fontes bibliográficas que nos auxiliariam na tarefa de interpretar o texto. O objetivo aqui é exercitar nossa leitura espontânea, aguçar nossa percepção aos enfoques do texto sem a influência de terceiros. Essa leitura espontânea, todavia, mostra-se insuficiente em alguns textos, como Mateus 2.1-12. O texto é misterioso para nós, contém detalhes que a mera leitura não nos permite desvendar. É provável que sua audiência primitiva compreendesse seus símbolos, mas nós permanecemos ignorantes. Mesmo neste caso, nossa leitura é capaz de destacar pontos de primeira importância para o evangelho.

O texto fala dos magos. Não diz que são três, não diz que são reis, e nem diz quais são seus nomes ou origem. A informação escassa dá margem à imaginação, e a tradição cristã é prova disso. Para os cristãos de hoje é difícil compreender o que fazem esses magos no texto. São gentios que se caracterizam por atividades “mágicas”, talvez como curandeiros populares, ou milagreiros, ou videntes, ou talvez consultem oráculos... Em todos os casos, a prática deles seria recusada pelo cristianismo. Então, o que fazem esses magos no texto de Mateus?

O texto começa dizendo que Jesus nasceu em Belém da Judéia (v. 1). Não é segredo que esta é a cidade que também deu origem ao rei Davi, lembrado pela tradição popular como o legítimo rei de Israel. A família de Jesus, em Mateus, não vem de Nazaré como em Lucas, eles já moram em Belém; o menino não nasce durante uma viagem e nem numa manjedoura, mas em casa (v. 11). O evangelista Mateus também tenta ligar as memória históricas de um Jesus de Nazaré com a cidade de Belém, da qual ele acreditava que sairia o Messias (segundo sua leitura de Miquéias 5.2); mas para isso usa uma narrativa totalmente diferente. O importante aqui, é que Jesus deve ser visto como um novo Davi, é um Messias rei, que veio ao mundo para assumir o lugar de líder da nação. Noutras palavras, ao relacionar Jesus com Belém, Mateus está ensinando seu leitor a entender Jesus como um novo Davi. Esse é o Messias que ele esperava, e é preciso fazer Jesus atender a esta expectativa.

Herodes, o Grande, entra em cena como um rei fingido que secretamente planeja destruir o menino Messias. Ele também parece acreditar nas profecias, já que elas trouxeram do oriente os magos que procuravam pelo “rei de Israel”. Como sabemos, Herodes morreu em 4 a.C., e isso nos aproxima um pouco da data que Mateus atribui ao nascimento de Jesus.

Enfim, nossa opinião é a de que este texto pretende, acima de tudo, legitimar Jesus como o Messias, o novo Davi que reinará sobre Israel. Ele, contra as probabilidades históricas, faz Jesus nascer em Belém, e ser perseguido por Herodes. Os magos, neste caso, exercem um papel importante, pois são gentios que provavelmente entenderam que o Messias estava para nascer em Belém através de suas próprias magias. Isso serve como uma advertência aos judeus, que não reconheciam com a mesma prontidão o Messias que Deus enviou diante dos seus olhos, e mostra que Jesus, desde o princípio, veio para ser adorado por todas as nações. O texto de Mateus 2.1-12 dá-nos, assim, as primeiras indicações de que o evangelho judaico-cristão de Mateus é, na maioria das vezes, aberto aos gentios que ignoram as Escrituras e crêem, e hostil para com o povo judeu que não aceita sua mensagem. O bom leitor deve, daqui por diante, ler o evangelho consciente de que o mundo está aberto para Jesus, mas nem tanto os judeus; e deve também lembrar-se de que este Jesus, anunciado pelas profecias, atende às expectativas daqueles que esperavam um novo governo davídico.

quinta-feira, 3 de março de 2011

O JUSTO JOSÉ E O NASCIMENTO DE JESUS: MATEUS 1.18-25

Depois da genealogia de José, o autor do evangelho de Mateus dedica-se à impossível tarefa de fazer da vida de Jesus o cumprimento de profecias do Antigo Testamento. Ele narra eventos fictícios como se fossem reais, moldados cuidadosamente para que se encaixem nas suas próprias expectativas messiânicas. Veremos isso passo a passo, para começar, com a história do nascimento de Jesus.


Quando Maria ficou grávida, ela era uma moça provavelmente muito jovem, já prometida em casamento a José, um homem de mais idade. Mas em Mateus o conflito é com José, a narrativa foca-o e faz de Maria personagem secundário. Na verdade, no evangelho de Mateus e em sua história da infância de Jesus, não há nenhuma ênfase na personagem Maria, como vemos em Lucas. Sempre é José quem recebe os avisos em sonho e conduz o menino Jesus pelos caminhos que a ele estavam determinados.


Na narrativa, José fica sabendo que sua noiva está grávida, e só podia pensar em imoralidade. Entretanto, por ser ele um homem “justo”, José salva a reputação de Maria assumindo a responsabilidade pela gravidez. Isso é o que observou Paulo R. Garcia, quando mencionou esta passagem em um artigo de 1996 (Garcia, 1996, p. 64). Então, José é chamado “Justo” provavelmente por ter assumido a culpa publica pela gravidez e preservar a imagem e a vida de Maria, ainda que ele não estivesse mais disposto a casar-se com ela. É possível que a saída seria a fuga de José, o que faria com que a sociedade o culpasse pela gravidez, poupando Maria, que para ele ainda era culpada.


O epíteto de José, “justo”, é importante para Mateus; é a maneira como ele descreve aqueles que praticam a verdadeira Lei (Lima, 2009). Para este evangelho, amar a Deus e ao próximo resume a Lei e os Profetas (Mt 22.36-40); noutras palavras, os judeus-cristãos devem fazer ao outro aquilo que você quer que os outros vos façam (Mt 7.12). José é o primeiro exemplo desse tipo de atitude “justa”, é isso o que o faz especial, o escolhido para a missão de defender e conduzir o menino Messias em seus primeiros anos. Esse texto nos oferece os primeiros parâmetros da moralidade mateana, que interpreta a Lei para benefício humano e não para condenação.


Depois que José prova sua “justiça”, seu valor moral através da valorização da vida alheia, um anjo lhe aparece em sonho para dizer que Maria não engravidara de outro homem, mas do Espírito Santo, pelo que José, aliviado, decide casar-se e torna-se um auxiliador do projeto divino.


A seguir (1.22-23) vemos o autor declarar abertamente que tudo o que aconteceu tinha relação com uma antiga profecia, que pode ser lida em Isaías 7.14. Diferentemente do que vimos na genealogia, aqui Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e o mais relevante disso tudo é que a preexistência da profecia isaiânica e a fé nela é o que motiva a adequação das tradições sobre a infância de Jesus. Ou seja, a profecia e a interpretação que os judeus deram a ela delinearam a composição das narrativas sobre a infância de Jesus, e não o contrário. Fazer de Jesus alguém gerado diretamente por Deus, e não por um homem, era uma exigência anterior ao texto evangélico. Temos aqui o elemento que nos conduz à primeira conclusão sobre a teologia mateana; o evangelho preocupa-se em fazer de Jesus um continuador da tradição vétero-testamentária. A vida de Jesus deve, para satisfazer às expectativas religiosas do autor, cumprir as profecias supostamente messiânicas, contendo em si mesmo as características heróicas de personagens como Davi e Moisés, como veremos nos próximos textos.



Referências Bibliográficas



GARCIA, Paulo Roberto. Lei e Justiça: Um Estudo no Evangelho de Mateus. In. Estudos Bíblicos, 51. Petrópolis: Vozes, 1996, pp. 58-66.


LIMA, Anderson de Oliveira. Os Justos e os Profetas: Designações para os Judeu-Cristãos no Evangelho de Mateus. In. Revista Metanoia. Universidade Federal de São João del-Rei, 2009.