quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

ORTODOXOS E GNÓSTICOS DISCUTEM A RESSURREIÇÃO

Este texto, assim como o anterior, são breves estudos que preparei para servir como material para sala de aula neste semestre. Em certo sentido, este dá continuidade ao anterior, falando sobre o processo de institucionalização na igreja cristã primitiva. Outra vez, achei que algumas informações podem ser de interesse geral, e por isso divulgo aqui esta versão resumida do estudo.

Depois da crucificação de Jesus, além dos doze apóstolos e outros que fixaram residência em Jerusalém, outros muitos discípulos que ouviram na Galiléia a respeito do Reino de Deus continuaram a missão de Jesus de maneira independente. O próprio Paulo é um exemplo de cristão que aderiu ao cristianismo de maneira independente dos doze apóstolos, e deu seguimento ao seu próprio modo de entender a mensagem de Jesus. É impossível enumerar quantas formas de cristianismo existiram desde as primeiras décadas, mas sabemos que eram várias, algumas completamente independentes da influência de Pedro. As igrejas de Paulo, por exemplo, já seguiam numa direção diferente daquela seguida por Tiago em Jerusalém; a igreja de Mateus também é bastante diferente daquela igreja que o evangelho de João testemunha, e há ainda textos como o evangelho de Tomé, que revelam a existência de vertentes completamente distintas do cristianismo primitivo. Isso está claro, e no meio de tanta diversidade surgiu um debate a respeito da ressurreição de Jesus.

Os textos bíblicos, como sabemos, narram que Jesus ressuscitou de forma corpórea, que andou, ensinou e comeu com os discípulos depois de voltar à vida. Conta também que ele comissionou os discípulos, e depois subiu ao céu. Depois disso, a igreja não teve mais contato com o Jesus em carne, mas com o Espírito Santo. A autoridade eclesiástica estava sobre aqueles que conheceram Jesus, sobre os doze, e depois deles, sobre aquele que descenderam da mesma linha apostólica. Essa é a versão bíblica da história (pele menos é a versão de Atos dos Apóstolos), a versão aprovada pelo cânon, a que testifica a autoridade da igreja. A igreja de Roma sempre apoiou-se nisso para afirmar sua autoridade e predominância. Segundo a tradição, Pedro, o principal apóstolo, havia delegado aos bispos de Roma a liderança da igreja, e por isso o Papa deve ser reconhecido como o “cabeça” da igreja sempre. Quer dizer que não podem haver outros líderes acima dele? Não, isso seria passar por cima da autoridade apostólica, seria desviar-se dos mandamentos deixados pelos primeiros cristãos.

Nisso, vemos que, por mais que se negue, o contato ou relacionamento do cristão com o Espírito Santo é inferior ao relacionamento direto com o Cristo. Aqueles que Jesus em carne comissionou serão sempre os cabeças. O Espírito não possui essa autoridade, não pode mudar a palavra do Jesus em carne e osso, e por isso, é claro que a ressurreição corpórea de Cristo e sua permanência na terra por algum tempo serve como legitimadores da autoridade da igreja de linha ortodoxa. Nas palavras de Elaine Pagels:

[...] quando examinamos o efeito prático que a doutrina da ressurreição corporal teve no movimento cristão, constatamos que, paradoxalmente, ela serve também uma função política essencial, legitimando a autoridade de certos homens que pretendem exercer liderança exclusiva sobre as igrejas enquanto sucessores do apóstolo Pedro. A partir do século segundo, esta doutrina serviu para validar a sucessão apostólica dos bispos, a qual tem constituído até ao presente a base da autoridade papal. (Pagels, 2006, p. 38)

Porém, a partir de textos encontrados na chamada “Biblioteca Gnóstica de Nag Hammadi”,[1] Pagels estudou o pensamento de cristãos primitivos que defendiam a ressurreição de Cristo, mas não de forma corpórea. A volta de Cristo, neste caso, era espiritual e permanente, e acreditavam que o relacionamento com Jesus estava disponível para todos em todas as gerações. Todo cristão era incentivado a buscar tal contato com Jesus, o que se dava por meio de experiências extáticas, de revelações. Só depois que esse contato se dava, é que alguém poderia se considerar um discípulo, alguém iniciado no evangelho pelo próprio Jesus. Esse conhecimento misterioso, incontrolável, e sempre novo, que se constituía no objetivo desse tipo de cristão, é o que fez com que fossem chamados de “gnósticos” (gnose é conhecimento em grego).

Se um cristão gnóstico baseava sua vida religiosa nesta experiência pessoal, é óbvio que o ensino dos mais antigos perde parte de seu valor. Para eles, todos podem ter a mesma experiência que Pedro teve, e por isso não há razões para haver hierarquias na igreja. Para os “católicos”, dos quais nós hoje descendemos, a autoridade apostólica é essencial; a Bíblia registra (é como se crê) o pensamento dos apóstolos, e não há como Deus dizer nada que modifique ou contradiga a mensagem apostólica. Tudo o que for dito, que nalgum ponto seja diferente dessa primeira revelação, é considerado heresia. Para os gnósticos essa revelação apostólica é apenas uma das possíveis revelações. Deus não se limitou aos apóstolos ou ao Novo Testamento, mas continua sempre falando com homens e mulheres que dele se aproximam por meio da fé em Jesus.

A divergência entre essas duas formas de crer não se baseia em fatos. Nenhum dos autores do Novo Testamento ou dos textos gnósticos sabia como se deu a ressurreição de Jesus. A briga entre ressurreição espiritual ou corpórea na verdade era alimentada por uma disputa de autoridade. Para os ortodoxos, a igreja precisava de limites, e escolher os textos canônicos e limitar a autoridade aos bispos como herdeiros da tradição apostólica, era um meio de impedir que as invenções posteriores desviassem a igreja de suas origens. Para os gnósticos, os ortodoxos, que tinham a pretensão de estruturar uma igreja universal (católica), queriam apenas controlar os homens, enquanto que Deus não se pode controlar. Eles incentivavam a busca pelo conhecimento direto de Deus, mesmo sabendo que isso impedia hierarquias e doutrinas. As coisas, para os gnósticos, deveriam correr soltas, sob a direção do próprio Deus, mesmo que isso trouxesse riscos, como o de que alguém, inspirado não por Deus, divulgasse algum tipo de mentira (Pagels, 2006, p. 52-53).

No evangelho de João 20.26-29 há uma passagem que ganha sentido a partir da discussão que estamos desenvolvendo. Jesus apresenta-se aos discípulos em forma corpórea, o que já nos revela que trata-se de um texto defensor da tradição apostólica e não gnóstica. O interessante é que o incrédulo Tomé é quem duvida de que Jesus tenha ressuscitado no corpo, e é quem acaba tendo que reconhecer o próprio erro, ao tocar o corpo já crucificado de Jesus. Não é coincidência de que exista um evangelho gnóstico que chamamos de Evangelho de Tomé.

Se Tomé, o discípulo incrédulo, é um dos nomes que marcam a tradição gnóstica, Pedro é o grande representante da tradição católica. Obviamente não estamos falando das opiniões dos próprios apóstolos, mas das disputas entre igrejas que se dizem discípulas de um ou de outro. Assim como em Marcos 8.27-30 Pedro ganha prestígio por ser o único que conhece a essência messiânica de Jesus, em Tomé 13 é este outro apóstolo que se destaca, superando Pedro e Mateus:

Jesus disse aos seus discípulos: “Comparem-me: digam-me a quem me assemelho”. Simão Pedro disse-lhe: “Tu te assemelhas a anjo justo”. Mateus lhe disse: “Tu te assemelhas a filósofo prudente”. Tomé lhe disse: “Mestre, minha boca não aceitará de modo algum dizer a quem te assemelhas”. Disse-lhe Jesus: “Eu não sou teu Mestre, porque tu bebeste, tu te embriagaste na fonte borbulhante que eu fiz brotar (ou ‘espalhar’)”. E, pegando-o, se retira e lhe diz três palavras. Ora, quando Tomé voltou para junto de seus companheiros, eles lhe perguntaram: “O que te disse Jesus?” E Tomé respondeu: “Se eu vos disser uma só das palavras que ele me disse, vós pegareis pedras e as lançareis sobre mim e fogo brotará das pedras e vos queimará”.

Obviamente, nenhuma das confissões é histórica. Ambas são defesas de igrejas em conflito, são textos que unem a tradição com a necessidade de legitimação. Cada igreja neste caso tenta defender sua opinião apoiando-se sobre a autoridade de algum apóstolo já falecido.

Vejamos ainda Tomé 114, um texto muito curioso, como último exemplo. Outra vez, é Pedro quem se dirige a Jesus sem qualquer sabedoria. Ele é corrigido, como lemos:

Simão Pedro lhes disse: “Que Maria saia de nosso meio, pois as mulheres não são dignas da Vida”. Jesus disse: “Eis que vou guiá-la para fazê-la macho, para que ela se torne também espírito vivo semelhante a vós, machos. Pois toda mu­lher que se fizer macho entrará no Reino dos céus”.

Deixando de lado o machismo que era uma questão cultural, chamamos a atenção para o fato de que Pedro não vê salvação para as mulheres, e quer tirar do meio dos discípulos Maria Madalena, outro nome representativo para a tradição gnóstica. Porém, neste texto, Jesus defende Maria, quer fazê-la discípula com os mesmos privilégios que os homens, mesmo que para isso ela tenha que se tornar como um homem. Não está implícita na fala de Pedro a crítica da igreja de tradição ortodoxa ao evangelho de Maria? E não está o autor do texto dizendo que a tradição que se denomina petrina não possui qualquer superioridade às demais? E não há também nesta igreja cristã gnóstica a permissão para que mulheres assumam papéis de destaque, coisa proibida desde o século II nas igrejas de tradição apostólica?

Por fim, o caminho ortodoxo, que se dizia apostólico, foi adotado pelo catolicismo romano e prevaleceu. A institucionalização, negativa por amarrar a liberdade religiosa, é positiva por impedir que as diferenças ponham fim à igreja. Esta igreja institucional, presa à vontade de seus líderes, venceu a batalha contra os cristãos gnósticos dos séculos II e III. Quando Lutero rebelou-se contra a autoridade papal e exigiu para todo cristão o direito de ler a Bíblia, estava em certo sentido retornando aos argumentos gnósticos, porém, sua tradição cristã o impedia de libertar-se também do cânon (que é uma das bases da instituição católica) e das estruturas hierárquicas. A reforma foi uma luta interna por liberdade, nada que nos fez sair dos limites já estabelecidos pela tradição apostólica. Hoje, se queremos dar outros passos em direção à liberdade, precisaremos ousar mais. Teremos que negar outra vez a existência de hierarquias, e a prioridade da revelação dada a uns poucos homens sobre a dos demais. E, para os mais ousados, é necessário ultrapassar os limites do cânon, buscar a Palavra de Deus em textos bíblicos e também fora deles, como a Didaqué, por exemplo, ou o Evangelho de Tomé, ou em livros modernos e em profetas dos nossos dias, que estão por aí criticando os abusos das instituições e tentando implantar um Reino onde só Deus é Senhor.

Referência Bibliográfica

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Porto: Via Óptima, 2006.



[1] Trata-se de uma extensa coleção de textos cristãos que traduziam originais gregos para o idioma copta, datados a maioria do século IV E.C., e que foi descoberta no Egito em 1945.

Nenhum comentário: