segunda-feira, 29 de março de 2010

A DEFESA APOCALÍPTICA DE PAULO EM 2CORÍNTIOS 12

Introdução:

O estudo que lhes apresento a partir de agora é o resultado de uma palestra que preparei sobre os escritos Paulinos (em especial 2Coríntios) que aqui ganha uma forma escrita. Não trata-se de um texto em formato acadêmico, da defesa de hipóteses, de análises exegéticas, mas de reflexões produzidas a partir dos textos bíblicos com a finalidade de oferecer aos leitores instrumentos de interpretação dos textos bíblicos. Apresento-lhes, portanto, observações sobre a história da igreja primitiva e características da literatura judaica dos Antigo e Novo Testamento, e ao final, sugestões para que tais informações contribuam com nossa compreensão de 2Coríntios 12.1-10, onde Paulo descreve em linguagem apocalíptica uma experiência visionária que lhe serve como defesa de seu apostolado na ocasião.

I – Origens: Tradições e Conflitos na Igreja Primitiva

Nosso objeto de estudo é a literatura paulina, produzida duas décadas após a morte de Jesus, frutos de um período histórico que nos legou poucas informações. Para compreendê-la, temos que quebrar alguns paradigmas cristãos em relação às memórias da igreja primitiva, e podemos começar evitando o nome “igreja” para se referir a esses primeiro ajuntamentos de pessoas que acreditavam em Jesus como o Messias ressuscitado. Quando falamos em “igreja”, pensamos em uma instituição estabelecida, com dogmas e liturgia, e esse, definitivamente, não era o que existia nas primeiras décadas após a morte de Jesus. Em segundo lugar, precisamos nos conscientizar de que a imagem deixada no livro de Atos dos Apóstolos é idealizada, retratando uma igreja homogênea, unificada, pacífica, próspera, poderosa... Mas há algumas evidências de as coisas não fluíam com tanta tranqüilidade.[1]

Jesus deixou em Jerusalém um grupo pequeno, formado por doze apóstolos e mais alguns seguidores próximos. Ali estava apenas seu círculo mais próximo, que conforme testificam as fontes tiveram as visões do Jesus ressuscitado e permaneceram em Jerusalém a espera de sua volta, o que acreditavam que ocorreria em breve.[2] Fora desse círculo mais íntimo, Jesus deixou na Galiléia e nas aldeias por onde ensinou centenas de simpatizantes que não se tornaram seguidores itinerantes, mas que creram em sua mensagem original e deram seguimento a ela após sua morte nas regiões rurais da Galiléia.[3]

Aí já temos falando em termos gerais de duas formas distintas de proto-cristianismo, mas elas não foram as únicas. Paulo aparece entre os novos adeptos de Jesus menos de dez anos após sua morte,[4] e logo passa a pregar e implantar outras comunidades independentes daquelas dos apóstolos originais, formando uma linha independente dessa igreja primitiva, que em muitos aspectos era oposta às demais. Sem ter vivido a experiência de conhecer e seguir Jesus, e sem inspirar-se no ensino dos doze, Paulo pregou o Jesus que ele conhecera através de uma experiência religiosa particular, quando o Filho de Deus veio ao seu encontro em sua forma glorificada.

O nome do salvador anunciado nessas comunidades era o mesmo, mas o fundamento de cada uma era diferente. Alguns firmavam-se nos homens que aprenderam diretamente de Jesus e aguardavam a volta do Messias, outros davam mais ênfase nas palavras de Jesus que ficara na memória popular, usando tais memórias como meios de resistir aos infortúnios da vida camponesa em tempos de dominação romana, e ainda outros seguiam Jesus sem nem mesmo preocupar-se com a origem judaica dessa religiosidade crendo apenas na vida eterna que tal homem lhes podia proporcionar. Tanta diversidade iria, como era de se esperar, gerar conflitos cedo ou tarde, e Paulo é um dos mais envolvidos em tais desacordos.

II – Conflitos sobre a Autoridade Apostólica de Paulo

Um dos conflitos girava em torno da autoridade de Paulo para pregar e instituir igrejas independentes entre os gentios. Ele podia fazer isso? Ele se dizia apóstolo com que direito? Não deveriam tais comunidades paulinas procurar seguir aquilo que os doze ensinavam após o primeiro contato com Jesus? Entender esse conflito e o posicionamento de Paulo é fundamental para compreender o texto de 2Coríntios e também as demais cartas autenticamente paulinas.

Em Atos dos Apóstolos 1.21-22 temos os critérios de Lucas para a escolha de um apóstolo. Narra-se a escolha de Matias para substituir Judas, e em resumo, os critérios para se tornar apóstolos são:

  • Só deveria haver doze apóstolos. Era necessário substituir Judas, recompor o grupo dos doze, mas também não deveriam ter mais do que isso. Aqui os apóstolos são os líderes da igreja, e o número doze talvez fosse para Lucas importante, simbolizando os patriarcas e as tribos do Antigo Testamento. Assim, toda a nação estaria representada nos doze, e ninguém poderia ser apóstolo fora desse grupo fechado de Jerusalém.
  • Segundo os critérios de Lucas, só podia ser apóstolo alguém que vivera com Jesus e os demais apóstolos desde o começo do ministério de Jesus. Assim, vemos que no livro de Atos, que tanta ênfase dá à trajetória de Paulo, o seu título apostólico não era reconhecido. Paulo não viu Jesus, podia ser pregador, missionário, mas nunca um apóstolo.
  • O objetivo do apostolado em Atos é testemunhar a respeito da ressurreição de Jesus. Eles não eram necessariamente missionários, enviados como sugere a palavra “apóstolo”. Por isso tinham que conhecer o Jesus humano e o Jesus glorificado, para que seu testemunho de que ele morreu e ressurgiu fosse digno de confiança. Outra vez, Paulo está desqualificado.

Passemos agora para a opinião de Paulo, expressa de maneira mais clara ainda em suas cartas.

Paulo, escrevendo cartas na década de 50, discorda de Lucas abertamente. Ele começa suas cartas dizendo que era apóstolo, e que tal autoridade não fora recebida de homem algum, mas diretamente de Deus (Gl 1.1). Nesse caso, ele não apenas se defende das possíveis acusações como também ataca os outros apóstolos dizendo que eles baseavam-se em chamado humano.[5] Paulo se dizia vocacionado por Deus (Gl 1.15-17), orgulhava-se de não ter dependido em nada dos doze apóstolos que inclusive, nunca lhe acrescentaram nada (Gl 2.6), e até discorda de Atos ao dizer que desde o começo, já haviam mais do que doze apóstolos (1Co 15.3-9).

Tantas discordâncias entre o que Paulo e Lucas escreveram, e tanta distância cronológica entre eles (Paulo provavelmente morreu em meados da década de 60 e Lucas escreveu sua obra lá pela década de 90), são motivos que nos levam a duvidar que esse autor conhecido como Lucas seja aquele companheiro de viagens de Paulo.

Quero ainda citar um texto da Didaqué, que é um manual catequético dos cristãos primitivos (talvez do começo do segundo século nalguns pontos, mas ainda mais antigo em outro) que mostra outra visão em relação ao ministério apostólico:

“Todo apóstolo que vem até você deve ser recebido como o próprio Senhor. Ele não deve ficar mais que um dia ou, se necessário, mais outro. Se ficar três dias é um falso profeta. As partir, o apóstolo não deve levar nada a não ser o pão necessário para chegar ao lugar onde deve parar. Se pedir dinheiro é um falso profeta” (Did. XI.4-6)

Neste outro texto temos uma evidência clara de que a autoridade dos apóstolos foi reduzida, e líderes estabelecidos em comunidades fixas ditavam as regras. Apóstolo já não é líder, mas missionário, pregador itinerante; e como missionário não deve trabalhar, mas comer daquilo que lhe oferecerem por onde andar. Todavia, eles não podem estabelecer-se por mais que dois dias, e nem podem obter qualquer lucro de seu trabalho.

O que pretendo enfatizar é que em Atos, em Paulo e na Didaqué, temos maneiras diferentes de compreender o apostolado. Era uma igreja em formação, buscando definições, discutindo diferenças, e isso deve nos fazer abandonar a imagem de um cristianismo puro e perfeito que por anos nos foi transmitida.

III – Conflitos sobre a Autoridade Apostólica de Paulo

Como meu alvo é o texto paulino, coloco-me eu seu lugar para entender, nesse ambiente conflituoso, quais eram as acusações que este apóstolo recebia e assim, preparar a compreensão para sua defesa. Vamos agora localizar o conflito. Isto é, qual ou quais eram os grupos que rivalizavam com Paulo? Não era, certamente, o grupo de Lucas. Este, embora não o considerasse apóstolo, apoiava Paulo e como gentio via a iniciativa de Paulo de romper fronteiras culturais como ato heróico, além do que, a comunidade lucana viveu cerca de trinta anos depois, não tendo contato direto com Paulo. Também não eram os autores da Didaqué que rivalizavam com Paulo na década de 50. Então, quem eram?

Paulo ficou conhecido na história como o apóstolo dos gentios. Porém, lendo Atos vemos que ele quase sempre procurava uma sinagoga para pregar num sábado. Então, temos a impressão de que ele pregava para judeus, e não para gentios. Essa aparente contradição pode ser resolvida facilmente se lermos algumas passagens de atos com atenção.

Em At 13.14-16, nosso primeiro exemplo, Paulo e seus companheiros chegam a Antioquia da Pisídia e entram numa sinagoga num dia de sábado. O público, porém, não é totalmente judaico. Paulo, dentro da sinagoga, nomeia a audiência dizendo: “Varões israelitas e os que temem a Deus...”. Quer dizer que havia ali homens judeus, e outros que não eram judeus, mas que estavam na sinagoga porque temiam a Deus, um grupo misto de gentios e judeus dentro da sinagoga. Outros exemplos estão em Atos 17.1-4, onde Paulo prega na sinagoga por três semanas e se convertam judeus e gregos, e também em Atos 17.16-17.

Tal testemunho textual também se confirma com base na arqueologia. J. L. Reed e J. D. Crossan discutem evidências arqueológicas de sinagogas dos primeiros séculos mostrando inscrições com os nomes dos participantes que divide o grupo entre judeus, prosélitos (gentios convertidos ao judaísmo), e “tementes a Deus” ou “adoradores de Deus”.[6] Esses “temente a Deus”, eram homens que não haviam se circuncidado, não seguiam a lei com o rigor dos demais, mas simpatizavam com o monoteísmo judaico e com sua moral religiosa. A tese defendida pelos autores e adotada por mim, é que Paulo entrava nas sinagogas para pregar não somente aos judeus, mas principalmente a esses simpatizantes, que já conheciam a cultura religiosa judaica e estavam propensos a aceitar a messianidade de Jesus, mais “leve” do que a proposta judaica tradicional com seus pesados mandamentos.

Assim, digo que os principais opositores de Paulo eram judeus que sentiam-se lesados pela iniciativa do apóstolo de tirar das sinagogas pessoas que ali já tinham sua importância. Paulo roubava-lhes freqüentadores, e é bem provável que mesmo as comunidades judaico-cristãs mais conservadoras discordassem desse seu método. Por fim, enumero abaixo algumas das supostas acusações que poderiam ser feitas contra Paulo:

1. Paulo nunca viu Jesus nem andou com os doze apóstolos, e isso desqualifica sua pregação que é indireta e o impede de ser um apóstolo autorizado na opinião de alguns;

2. Paulo fora fariseu e perseguidor da igreja, seu passado condenável preocupava parte dos cristãos primitivos;

3. Paulo prega uma fé separada do judaísmo que os apóstolos e até Jesus seguiram, e isso é um nítido afastamento das origens do movimento;

4. Paulo cria divisão nas sinagogas ao atrair os simpatizantes gentios, e como seu trabalho causa tanta discórdia, talvez não seja um trabalho benéfico.

IV – Da Profecia à Apocalíptica: Características da Literatura Judaica

Estou me aproximando do nosso objetivo, que é o texto paulino, mas ainda me falta tratar da tradição literária que influenciou a linguagem de Paulo em sua defesa do seu apostolado. Para isso, vou regredir um pouco mais e falar sobre a profecia, e em seguida, sobre a apocalíptica. Ofereço uma referência vetero-testamentária para cada uma, mas não as analiso em detalhes. A leitura do texto e o aprofundamento no estudo fica por conta do leitor.

Primeiro, sugiro a leitura de Amós 3.9-12, texto do século VIII a.C., tipicamente profético. O profeta convida nações pagãs, geralmente vistas como epítomes do pecado, para subir nos montes de Samaria e assistir de camarote às injustiças que há na cidade, então capital do Reino do Norte, Israel. Por fim, o profeta prevê a invasão assíria, a destruição da nação e da injustiça dela. Temos então, a partir desse exemplo, algumas características da profecia para enumerar:

1. A profecia é local, não prioriza em sua fala o mundo ou o universo inteiro, antes, sua preocupação é a nação ou no máximo países os vizinhos;

2. A profecia nasce da oralidade, e o profeta anuncia as visões e oráculo oralmente ao povo. Se temos profecia escrita, é porque depois alguém, comovido pela mensagem, a registrou por escrito, mas profetas não eram escritos a princípio;

3. A preocupação da profecia é principalmente social, isto é, lida com a pobreza, com a violência, com a injustiça, e com base no caráter de Deus, que é justo, prevê uma ação divina para alterar o rumo dos acontecimentos e punir os culpados;

4. A profecia típica é um fenômeno religioso principalmente pré-exílico, e que sofreu transformações com o tempo e a partir do século VI vemos nela cada vez mais a presença de elementos apocalípticos, o que pode ser considerado uma evolução da profecia.

Agora podemos seguir para a apocalíptica, cujo principal exemplo continua sendo o livro do Apocalipse de João, o último livro do Novo Testamento e o texto que deu nome ao gênero.[7] Esse gênero da literatura judaica existiu por vários séculos, e muitos dos textos apocalípticos são datados do chamado “período interbíblico”. Mas a apocalíptica continuou produzindo textos como o nosso Apocalipse de João e outros até o século III d.C. Porém, sugiro a leitura de um texto dos primórdios, que é apocalíptico, mas que também permanece próximo da profecia. Trata-se de Isaías 24.1-3. Após lê-lo, veja as características da apocalíptica conforme assinalamos abaixo:

1. A apocalíptica é mais textual que oral, os apocalípticos já escreviam suas visões e não as divulgavam oralmente como os profetas, embora eles mesmos ainda pudessem se considerar profetas;

2. A apocalíptica costuma apresentar viagens celestiais que os visionários têm em momentos de êxtase. Ou seja, são revelações inconscientes de coisas celestiais;

3. A apocalíptica é universal, e não local. Quando Deus intervém apocalipticamente na história, não muda uma nação, não troca um governo, mas acaba com a terra e todos os seus moradores, sejam eles bons ou maus. Astros são abalados, os elementos se misturam e nesse caos não há como escapar;

4. A apocalíptica apresenta-se em linguagem simbólica, velada. Há sempre uma espécie de “segredo apocalíptico” que não pode ser revelado, algo visto ou ouvido que não é permitido repetir (Dn 12.4; Ap 10.4). As bestas, mulheres, seres de várias cabeças e chifres, números secretos, são símbolos que já ocultam o significado real da mensagem;

5. A apocalíptica é pessimista com relação à restauração desse mundo. Enquanto o profeta espera a restauração política de sua nação, o apocalíptico só vê melhorias se o mundo acabar. A nova criação é assim, a sua esperança;

6. A apocalíptica é quase sempre “pseudonímica”. Isso significa que os visionários não revelam suas identidades em seus escritos, antes, costumam atribuir as viagens celestiais a outros personagens como Enoque, Pedro, Moisés, Daniel...;

7. A apocalíptica costuma apresentar uma revelação progressiva, gradual. No céu, o visionário visita vários estágios, vários templos, vários céus, vários selos, trombetas ou taças...[8] Em Divina Comédia o poeta italiano da Idade Média, Dante Alighieri, criou uma viagem celestial em que visitou inferno, purgatório e céu, demonstrando que compreendeu essa característica progressiva da apocalíptica judaica. Geralmente, só no estágio mais elevado o visionário vislumbra a glória de Deus;

8. A apocalíptica costuma contrapor a magnitude da revelação à fraqueza do visionário. Veja Ezequiel 1.28, Daniel 8.26-27 e Apocalipse 1.17, onde os visionários perdem as forças por terem vislumbrado coisas santas demais. Assim, podemos dizer quem em geral, na apocalíptica judaica quem recebe grandes revelações sofre como consequência a fraqueza física.

Paulo não nasceu no tempo da profecia, mas no tempo da apocalíptica. Por isso, no momento em que ele decidiu relatar sua experiência religiosa, escolheu a linguagem apocalíptica, própria de seu tempo e lugar. É isso o que veremos a seguir, lendo 2Coríntios 12.1-10.

V – Visões e Revelações de Paulo: Defesa do Apostolado em Linguagem Apocalíptica

Quando acima perguntei-me sobre a identidade dos rivais de Paulo, identifiquei-os entre os judeus. Paulo tinha problemas com judeus não cristãos das sinagogas de onde conseguia seus membros, e problemas com judeus cristãos que discordavam de sua pregação “liberal” e conflitante. Com base em Gálatas 2.11-14, os judeus cristãos de Jerusalém (os que eram da parte de Tiago) iam até comunidades paulinas da diáspora para contradizer a pregação de Paulo tentando aproximar novamente os convertidos do judaísmo mais conservador. Era uma disputa intra-judaica, e não entre judeus e cristãos.

Na carta paulina de 2Coríntios notamos a presença importuna de pregadores judeus que Paulo chama de “superapóstolos”. Tudo indica que Paulo, para defender-se, precisou “gloriar-se”, e em certo momento teve mesmo que apelar para revelações transcendentais a fim de que não ficasse atrás desses oponentes.[9] Nosso texto, 2Coríntios 12.1-10, é então um relato de viagem celestial extática que Paulo faz em estilo apocalíptico para provar que não deve nada aos seus rivais quanto às experiências sobrenaturais.

Exegeticamente, atentar para a maneira como o apóstolo enquadra sua fala nas características da literatura apocalíptica elimina uma série de problemas para os intérpretes, e revela-nos qual é o cerne de sua mensagem. Entretanto, não pretendo fazer uma exegese exaustiva, mas apenas algumas observações gerais sobre os pontos em que Paulo mais se aproxima dos típicos elementos apocalípticos:

(1) Em verdade que não convém gloriar-me; mas passarei às visões e revelações do Senhor. (2) Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos (se no corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe), foi arrebatado até ao terceiro céu. (3) E sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) (4) foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras indizíveis, de que ao homem não é lícito falar. (5) De um assim me gloriarei eu, mas de mim mesmo não me gloriarei, senão nas minhas fraquezas. (6) Porque, se quiser gloriar-me, não serei néscio, porque direi a verdade; mas deixo isso, para que ninguém cuide de mim mais do que em mim vê ou de mim ouve. (7) E, para que me não exaltasse pelas excelências das revelações, foi-me dado um espinho na carne, a saber, um anjo de Satanás, para me esbofetear, a fim de não me exaltar. (8) Acerca do qual três vezes orei ao Senhor, para que se desviasse de mim. (9) E disse-me: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo. (10) Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando estou fraco, então, sou forte”

Citei todo o texto como uma aproximação, mas seguirei destacando os aspectos mais relevantes dele um a um, fazendo a seguir breves comentários a respeito. Podemos então começar pelas “visões e revelações” que lemos no versículo 1. Menciono-o apenas para confirmar o que havia dito, que Paulo agora apela para suas experiências religiosas como defesa do seu apostolado, para mostrar que não é inferior a ninguém nem mesmo quando o assunto é a grandeza das revelações da parte de Deus. Curioso é que Paulo anuncia as visões e revelações no plural, e poderíamos supor que ele falaria de várias dessas experiências; porém, somente uma viagem celestial parece ser mencionada depois, ainda que durante sua vida, ele possa ter tido várias delas.

No verso 2 Paulo apresenta outro problema para os leitores ao escrever em terceira pessoa dizendo; “conheço um homem...”. A compreensão óbvia é que ele estaria agora falando de outrem, mas não é o caso. O contexto nos mostra que Paulo está falando de si, gloriando-se, e fica a dúvida sobre a razão dessa mudança de linguagem. A explicação, todavia, não é tão difícil para nós, que já estudamos a literatura apocalíptica e suas características. Mostrei que na apocalíptica o visionário costuma omitir sua identidade, e é o que Paulo faz aqui. Ele não adota outro personagem, não é um verdadeiro relato pseudoepigráfico, mas estou certo de que Paulo fala em terceira pessoa por ser esta uma espécie de convenção literária de todo texto legitimamente apocalíptico.[10] Portanto, não convém perguntar pela identidade desse visionário, é Paulo quem escreve e vê, e escreve corretamente seguindo os verdadeiros padrões da apocalíptica judaica.

Ainda neste versículo 2 temos outro detalhe para discutir, quando lemos “há quatorze anos...”. Eis uma referência cronológica, algo sempre desejado pelos exegetas que procuram tais índices para datar seus textos. Mas essa data não resolve todos os nosso problemas. Ao saber que Paulo está relatando um evento particular que havia se dado havia quatorze anos, sinto-me tentado a dizer que Paulo está contando a sua experiência de conversão, o seu primeiro encontro com Jesus. Teríamos neste caso uma versão direta da conversão narrada indiretamente em Atos dos Apóstolos 9. Porém, a data não confirma minha hipótese. Segundo Helmut Koester, Paulo se convertera em 35 d.C., e o texto de 2Coríntios 12 deve ser datado em 54 d.C.[11] Consequentemente, faltam alguns anos para que liguemos a conversão de Paulo à carta.[12] Então pode ser esta uma outra experiência religiosa de Paulo, que como vimos no versículo 1, pode ter tido várias. Mas chama-me a atenção que se ele conta algo que lhe ocorreu há quatorze anos, é porque tal experiência foi muito significativa, decisiva diria, para a sua trajetória. Esse problema, infelizmente, não pode ser resolvido, mas sabemos que estamos lendo um relato cuidadosamente escolhido dentre as experiências religiosas mais marcantes da vida do apóstolo.

Depois Paulo fala que foi ao terceiro céu. Ora, não precisamos perguntar se realmente existem vários céus, e como seria cada um deles. Essa é uma questão totalmente equivocada, já que essa graduação celestial é característica típica da literatura apocalíptica, como vimos acima. Paulo não se importa com os outros céus, mas certamente quer dizer que foi ao mais alto deles, ao centro, ao cume. Ele foi ao paraíso, o lugar ideal onde tudo o que se pode ver é perfeito.

A ênfase de Paulo na incerteza de que esta visão tenha acontecido no corpo ou fora dele é prova de que ele estava inconsciente. Houve um sono profundo, um desmaio, um arrebatamento. Para nós, trata-se de êxtase, de um estado alterado de consciência. Ao usar a palavra “arrebatado” no v. 4, Paulo nos mostra que a visão aconteceu de maneira espontânea, ou melhor, por vontade exclusiva de Deus. Ele não pediu, não desejou, não opinou; simplesmente foi tomado à força e levado. Ele é um escolhido, e talvez critique assim, de maneira indireta, a instrução dada por seus rivais aos coríntios, para que buscassem revelações semelhantes.

Sentimo-nos decepcionado quando o visionário vai descrever o que realmente viu ou ouviu e diz que eram “palavras indizíveis”. Eis o chamado segredo apocalíptico, em que o visionário jamais revela tudo o que conheceu. Como observação, a palavra grega arretos deve ser traduzida assim, como indizível, algo que não se pode dizer. O problema é que muitas traduções trazem “inefável”, e somos levados a crer que Paulo viu algo que ele não é capaz de descrever. Mas na verdade, o problema não é a capacidade de Paulo para descrever, mas a proibição de se revelar o que há no céu. Na verdade, é nisso que consiste o segredo apocalíptico, e não em coisas tão belas ou maravilhosas que não encontramos palavras para descrever.

No v. 6 Paulo fala que sempre evitou usar tais experiências visionárias em suas pregações e comunidades para que ninguém lhe atribuísse mais do que deveria. Outra vez, nossas traduções não ajudam muito. O caso não é de “preocupação” como dizem algumas Bíblias, mas de admiração, exaltação, idolatria talvez. Paulo se opõe a seus rivais dizendo que diferente deles, nunca fez propaganda de si mesmo com suas experiências para que ninguém o admirasse demais e se esquecesse de Jesus. Isso é também uma característica apocalíptica, a humildade do visionário que o leva a não divulgar sua visão e não assinar seu texto. Porém, essa característica já foi tratada.

Por fim, enfrentarei com mais vagar o problemático tema do “espinho na carne”, que tão divergentes interpretações produziu ao longo dos séculos. No versículo 7 lemos que tal “espinho” foi-lhe dado por causa das visões e revelações. Esse é o detalhe relevante; o tal “espinho” era uma consequência dessas experiências, e não uma coisa diferente, separada, independente. Paulo não tinha uma doença e uma visão, mas a visão lhe trouxe a doença (isto se o espinho for uma doença). Embora ele não diga o que é realmente este espinho, não temos dificuldade em reconhecer a linguagem metafórica de Paulo, que ao falar de espinho se remete provavelmente a algum mal físico, algo enfiado em seu corpo que talvez lhe causasse constante dor. Paulo, novamente ligando-se à tradição apocalíptica, em que todo visionário cai por terra e sofre de alguma fraqueza física em decorrência de sua visão, liga sua fraqueza à visão como lia-se em Daniel 8.26-27.[13] Ter tal problema era a prova de que Paulo realmente fez tal viagem e viu a glória de Deus. Ele não saiu ileso da presença de Deus, pode-se crer que ele é um verdadeiro visionário apocalíptico.

Alguns encontram problemas na interpretação por causa do tal “mensageiro de satanás”, conforme aparece no texto das Bíblias brasileiras. Satanás, no imaginário religioso de Paulo, não é um ser físico, e não podemos julgar que esse seu suposto mensageiro fosse um homem a não ser que houvesse alguma indicação no texto. Parece se tratar de um demônio, ou anjo, como diz verdadeiramente o texto grego ao usar aggelos. Os tradutores responsáveis por nossas Bíblias em português confundem-nos ao preferir usar “mensageiros” nesse caso, movidos, me parece, por preconceitos que os impediram de dizer que Satanás possui anjos. O linguajar do cristianismo moderno influenciou os tradutores e em seguida confundiu os leitores, cabe-nos aqui retirar tais preconceitos de diante dos olhos para ver o texto como ele é.

Como sabemos, na antiguidade os homens atribuíam problemas físicos a demônios e possessões, e muitas curas eram buscadas não por meio de práticas medicinais, mas por exorcismos. Por isso, doenças eram muitas vezes tratadas por curandeiros ou benzedeiras, como ainda hoje testemunhamos. Com base nessas suposições, diríamos que o tal mensageiro de Satanás faz referência a um mal físico de Paulo que era atribuído pelo apóstolo a ação de um espírito imundo, e não tenho mais dúvidas de que independente da interpretação que o apóstolo deu para a origem do seu mal, esse mal era algo que o afligia fisicamente. Aposto nisso porque a fraqueza do visionário na tradição apocalíptica é física, e não externa, afastando-me da hipótese que houvesse qualquer perseguidor humano a Paulo.

Eu aconselho o leitor a evitar grandes conjeturas sobre esses detalhes e se concentrar no cerne da mensagem. Paulo não dá grandes detalhes no texto porque o que realmente importa é que ele foi levado ao céu, e isso o fez pregar Jesus de maneira independente da igreja de Jerusalém. Ele aprendeu diretamente de Deus, e isso é mais do que ser discípulo de um apóstolo qualquer. O relato da visão de Paulo não é simplesmente um relato de visão, é uma pregação, uma defesa de sua carreira, é o ponto culminante de seu currículo.

Conclusão

Paulo era um homem integrado a seu mundo e cultura, e quando quis falar de sua fé, baseada em experiências extáticas, usou a linguagem apocalíptica, que condicionava sua linguagem como também fazia a tantos outros visionários e escritores daqueles dias. Desta forma, optei por fazer essa exposição da igreja primitiva e da literatura religiosa judaica a fim de que entendamos parcialmente o mundo que condicionava sua linguagem.

Minha conclusão é que a igreja primitiva não era tão coesa como geralmente imagina-se, e que Paulo era um personagem polêmico nesse contexto, atraindo oposição e desavenças ao mesmo tempo em que ajudava e motivava outros. Paulo deve ser lido a partir dessa perspectiva de conflito que foi relevante em toda a sua trajetória, o que explica outras peculiaridades de sua literatura. Além disso, seus textos devem ser encarados hoje como documentos do judaísmo cristão do século I, envolvidos em uma tradição religiosa e literária de muitos séculos. Em 2Coríntios 12.1-10 estes precedentes são indispensáveis, decisivos até, para que cheguemos a uma compreensão razoável daquilo que Paulo pretendia dizer.

Encontramos assim um homem de fé, que mais que um pensador, era alguém que se guiava por experiências religiosas extáticas. Esse pensador religioso era também um homem integrado ao seu mundo, e além da retórica grega emprega com propriedade as convenções da linguagem judaica apocalíptica. Paulo integra fé, tradição, erudição e práxis, e é por tudo isso que conquistou posto tão elevado no cânon do Novo Testamento e na história do cristianismo.

BIBLIOGRAFIA

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[1][1] Para uma introdução sucinta sobre o problema do uso de Atos no estudo da biografia de Paulo veja: QUESNEL, M. Paulo e as Origens do Cristianismo. p. 11-34.

[2] CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. p. 511.

[3] STARK, R. Cities of God. p. 25.

[4] A data a que os estudiosos atribuem a “conversão” de Paulo é imprecisa, e varia entre 34 e 35 d.C. Veja, por exemplo: HEYER, C. J. den. Paulo, um Homem de Dois Mundos. p. 33; e também: KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento (II), p. 119.

[5] Sobre a preferência de Paulo pelo Jesus glorificado escreveu Gerd Theissen em O Novo Testamento, p. 43:

“Os ditos e feitos do Jesus terreno não lhe interessavam muito. Ele não cita senão poucas palavras de Jesus. Por que tão grande silencia sobre o Jesus terreno? Existia, certamente, uma razão pessoal para isso: os outros apóstolos tinham sido seguidores de Jesus. Paulo, que pretendia ser de igual condição que eles, não o havia conhecido. Ele considera o conhecimento deles sobre o Jesus terreno como conhecimento ‘segundo a carne’ (2Co 5.16). Mas Paulo, como os demais apóstolos, tivera uma aparição do Ressuscitado. Nisto ele não lhes era inferior. Não admira que para ele a fé no Ressuscitado ocupe o lugar central”

[6] CROSSAN, J. D.; REED, J. L. Em Busca de Paulo, pp. 31-71.

[7] NOGUEIRA, P. A. de S. O que e Apocalipse. pp. 11-13.

[8] NOGUEIRA, P. A. de S. O que e Apocalipse. pp. 87-91.

[9] Sobre o “gloriar-se” como forma aceitável de defesa da própria reputação, principalmente quanto tal auto-elogio tem em vista o bem do auditório, e seu uso em 2Coríntios, veja: WATSON, D. F. Paulo e o Gloriar-se, pp. 57-79.

[10] Esta proposta também foi colocada por Jonas Machado no artigo intitulado: Paulo, o Visionário, p. 174.

[11] KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento (II), pp. 119, 142.

[12] Jonas Machado também discute esse problemas e também reconhece que, embora não seja fora de propósito supor a experiência inicial de Paulo em Damasco, esta pode ser uma experiência posterior, por volta do ano 42: Cf. MACHADO, J. Paulo, o Visionário, p. 178.

[13] Outros detalhes são mencionados em: MACHADO, J. Paulo, o Visionário, pp. 175-176.

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