sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A PALAVRA DE DEUS E A INTERMEDIAÇÃO HUMANA

Senti a necessidade de escrever sobre este tema porque novamente me defrontei com a dificuldade que os leitores cristãos sentem quando precisam lidar com a Bíblia como ela realmente é. Quero dizer que quando estou falando sobre os textos bíblicos e por acaso tenho que ser honesto e dizer, por exemplo, que muitas referências geográficas dos textos estão equivocadas, que os dados históricos dos evangelistas não condizem com a verdade, que os detalhes topográficos geralmente não passam de estratégias usadas pelos escritores bíblicos para ilustrar suas narrativas, vejo nos olhares dos meus ouvintes que o que digo causa-lhes consternação. Pior ainda fica quando vemos uma profecia não cumprida, uma contradição irreconciliável entre dois textos sinóticos, ou quando temos de admitir que algum herói bíblico provavelmente não passa de um personagem fictício, que algum texto que incita a violência não devia estar na Bíblia..b. Este choque, com o qual provavelmente terei de lidar durante toda a vida, é um problema que merece nossa imediata atenção.

Talvez este primeiro parágrafo tenha lhe causado náuseas. Talvez estejas me pedindo provas do que digo. Não temos tempo para exemplificar tudo isso aqui, mas se este foi o seu caso, o que tenho a dizer ser-lhe-á muito útil.

Os cristãos evangélicos estão bastante familiarizados com os sermões. Todas as semanas eles ouvem pregadores abrirem as Bíblias e a partir da leitura desenvolverem suas admoestações que visam edificar a vida dos ouvintes. Nesta prática é comum ouvirmos os preletores afirmarem que o que dizem é Palavra de Deus. Os pregadores sabem que o processo para a preparação de um sermão exige boa dose de meditação e trabalho humano; sabem também que ao longo dos anos eles evoluem, e que sempre há sermões pregados que não pregariam outra vez. Mesmo assim, sabendo que o exercício da pregação é uma prática tão humana, o resultado é fundamentado sobre a autoridade divina. A igreja também sabe disso. Todo ouvinte experimentado pode se lembrar de coisas boas e ruins que já ouviu através dos sermões, e nem por isso se questiona a autenticidade dessa Palavra de Deus. O ouvinte sábio está consciente de que deve reter apenas o que for bom, atribuindo as demais coisas à mente do pregador, que é humana e, portanto, propícia aos erros.

Agora, pergunto onde é que está a diferença entre o sermão pregado nas igrejas praticamente todos os dias e a Bíblia? Não são ambas Palavras de Deus? Na verdade, os cristãos sem notar criam diferentes níveis de Palavra de Deus. Há uma Palavra de Deus que é inerrante, imutável, perfeita... esta é a Bíblia; e há também a Palavra de Deus que é intermediada pelos homens, os sermões, que podem ser recebidos com algum senso crítico. A questão é que essa distinção entre as diferentes categorias de Palavras de Deus é totalmente arbitrária, sem critérios, irracional. Todos sabemos que a Bíblia, assim como os sermões, foi criada através da intermediação humana, o que a torna uma criação conjunta de Deus e homens. Não podemos assegurar que a Bíblia, uma verdadeira coleção de sermões de dois milênios de idade, é superior àquilo que hoje se recebe de Deus.

Outra vez a nossa tradição religiosa, nossas heranças católicas e medievais que nos legaram o canôn e muitos outros dogmas, nos enganaram. Elas nos levaram a ignorar a real constituição do livro que chamamos de Palavra de Deus. Deixe-me dizer que tenho dedicado minha vida ao estudo e ensino dos textos bíblicos; que acredito que ela é a Palavra de Deus e que sua mensagem pode transformar o mundo; todavia, aprendi a encarar os fatos. A Bíblia, penso, foi criada por iniciativa divina, mas tal criação foi fortemente influenciada pela intermediação humana pela qual passou. Agora, quando lemos a Bíblia, temos que lê-la como se estivéssemos ouvindo a sermões antigos, procurando separar aquilo que Deus ali colocou para nos guiar daquilo que os homens, fazendo o melhor que podiam, incluíram por conta própria e permissão de Deus.

Gostaria muito, se for o caso, de me sentar ao lado do meu leitor a partir de agora e começar a ler a Bíblia com essa postura sóbria que proponho. Descobriríamos juntos como Deus falou e continua falando através dos homens, com a finalidade de que o buscássemos aqui mesmo, no cotidiano, no convívio com pessoas que têm sido sensíveis ao seu Espírito.

Um comentário:

Francisco Junior disse...

Quero trocar as lentes da minha leitura Biblica. Conto com sua ajuda.