sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

COMO VIVER BIBLICAMENTE NO SÉCULO XXI

Primeiras Palavras

Tenho escrito muito, dezenas de páginas por semana, e gosto muito do que faço. Mas ao contrário do que se pode pensar, não escrevo somente porque tenho a intenção de ensinar, escrevo também para aprender. É escrevendo que penso melhor, que desenvolvo e organizo idéias, e tal exercício tem me servido muito bem. Se estás lendo este texto no meu blog, poderás notar que meu último texto, intitulado “O Futuro a Deus ‘Não’ Pertence”, é um exemplo do que estou falando, onde mais registro pensamentos do que qualquer outra coisa.

Hoje, voltei às letras apressadamente para meditar e ensinar algo que julgo ser de grande importância. Todo cristão busca conhecer Jesus e vê nele o maior exemplo a ser seguido, mas em algum momento da sua vida deve se perguntar como é possível realmente assemelhar-se a Cristo, posto que ele descrito em tão alto padrão. Em alguns aspectos imitar Jesus não é problema; todos sabem sentar na casa dos amigos e compartilhar uma boa ceia, todos concordam que é preciso orar, que é preciso dividir o que sobre Deus aprendemos com os outros... Todavia, quantos estão prontos a aceitar o celibato que ele aceitou? Quantos deixam casa e família para anunciar o Reino de Deus aos pobres de outras regiões? Quantos abrem mão dos poucos pães e peixes que possuem para alimentar os famintos?

Não precisamos nos alarmar por isso. É absolutamente normal que façamos uma leitura seletiva da Bíblia, o problema é que geralmente essa seleção não é consciente, mas instintiva. Em decorrência dessa inconsciência, muitos selecionam como normativos para suas vidas textos que não precisávamos levar ao “pé da letra”, enquanto descartam outros muito mais relevantes. O objetivo desse texto é distinguir três aspectos básicos da religiosidade bíblica, e avaliar qual ou quais deles são relevantes para o cristão que pretende agradar a Deus em pleno século XXI. Essa tarefa primeiro nos proporcionará, a mim e ao leitor, aprendizado, e depois nos fornecerá subsídios para a vida cristã comprometida e coerente.

Devo mencionar que mais uma vez devo a John Dominic Crossan a distinção dos três aspectos da religiosidade bíblica que vou expor, o que deixou-me encarregado apenas de transmiti-la aqui em linguagem mais acessível ao meu leitor. Aos interessados no tema peço que leiam “O Nascimento do Cristianismo”, ed. Paulinas, pp. 321-328.

Três Aspectos da Religiosidade Bíblica

A religiosidade bíblica desenvolveu, durante os vários séculos em que os judeus padeceram sob o domínio de impérios estrangeiros, diferentes alternativas de resistência à opressão baseadas na fé. Na verdade, os judeus adotaram e adaptaram formas de resistência pré-existentes em outras culturas, gerando movimentos diversos que de hoje de maneira muito genérica chamamos de “judaísmos”. O que aproxima essas diferentes formas de resistência é o que chamamos de escatologia, ou seja, a expectativa de que as circunstâncias desfavoráveis seriam transformadas no “fim”, seja esse “fim” o fim de um império, de uma era, do mundo, da sua vida terrena etc.

A primeira dessas formas de religiosidade judaica é o que chamamos de apocalipsismo. Nela, nega-se o mundo presente através da crença de que Deus intervirá de maneira decisiva na história para pôr fim às injustiças. João Batista era adepto do apocalipsismo, e advertia seus ouvintes sobre a “ira vindoura” (Lc 3.7). O anúncio do Reino de Deus, comum a João Batista e a Jesus, é também tipicamente apocalíptica, pois implica necessariamente no fim de todo governo humano para que Deus assuma o comando. O apocalipsismo não é somente esperança futura, traz consigo também certo grau de violência, que se não é humana, ao menos é divina. O que se espera é, falando francamente, uma matança dos inimigos para a inauguração de um novo mundo purificado, uma guerra do Armagedom sanguinária que inspirou muitos apocalípticos a buscarem a justiça através da guerra.

O apocalipsismo não se extinguiu, como podes pensar, e grupos de várias religiões continuam esperando um evento salvífico como a volta de Cristo, o arrebatamento da igreja, o fim do mundo... O ponto negativo é que nessa espera alguns crêem que o tempo está se esgotando e querem “converter” os outros à força. Estes e gostam de textos que dizem para quem não tem espada adquirir uma (Lc 22.36), ou que os inimigos do homem estarão na sua própria casa (Mt 10.36). Outros, mais radicais, crendo que a hora chegou se suicidam, ou partem para a guerra civil como uma forma de dar início ao julgamento escatológico como fizeram os judeus em 66-70 d.C. e Che Guevara na América há algumas décadas. Pena que a vitória pela espada nunca é definitiva, e quem vence pela espada tem que manter seu governo também pela espada, numa tensão que a qualquer momento pode explodir em novas batalhas.

O segundo aspecto da religiosidade judaica é chamado de ascetismo. Os adeptos dessa forma de religião combatem o mundo através do isolamento e da purificação individual. São ascéticos os monges e as freiras, que separam-se do mundo, seguem padrões rígidos de alimentação e jejuns, e fazem votos de castidade. Eles esperam aproximar-se de Deus afastando-se do mau que está no mundo, e consideram-se vocacionados para tal forma de vida. Protestam assim dizendo pelas atitudes de renúncia que o que há “lá fora” não é bom. João Batista era também um desses, pois isolou-se no deserto, não comia nada além de gafanhotos e mel, vestia-se humildemente, purificava-se a si e aos seus discípulos através de um banho ritual, e ao que tudo indica não tinha mulher (Mt 3.1-6). Jesus não foi tão radical na prática ascética quanto João; comida livremente e não parece ter adotado qualquer banho ritual em seu seguimento. Todavia, Jesus também deixou sua casa e família pela sua missão, não tinha esposa, e isolava-se para tempos de oração. Assim ele inspirou nossos padres ou mesmo evangélicos que gostam de subir montes e jejuar em busca de santidade.

O último tipo de religiosidade que quero mencionar é o chamado eticismo (de ética). Só pela estranheza que o nome nos transmite, já dá pra imaginar que este é o aspecto menos mencionado pelos religiosos de hoje. Neste caso a resistência ao mundo não é feita em isolamento físico, mas em mudança de atitudes cotidianas. O foco não está na intervenção de Deus, mas na mudança da sociedade injusta através das ações justas dos adeptos, inspirada, todavia, no conhecimento de um Deus que é justo. Esse tipo de religiosidade ensina a não mais participar de qualquer instituição promotora da injustiça, a não mais colaborar com a violência, com a desigualdade social, a crer que mudando as pessoas mudamos o mundo. Uma característica marcante desse tipo de religiosidade é que ela se nega a reagir a ações violentas (Mt 5.39), motivo pelo qual nasceu desde os primórdios do cristianismo a idéia de que o martírio era um privilégio a ser recebido com alegria.

Sem dúvida Jesus e os seus primeiros seguidores eram sérios adeptos desse eticismo. Jesus ensinou a dar a outra face aos que nos agridem (Mt 5.39), crendo que tal atitude resultará em vida eterna (Mt 10.28); ensinou a não dar as costas aos que nos pedem (5.42), a não cobrar pelas boas ações praticadas (Mt 10.8), a não tratar ninguém com preconceito (Mc 2.17) etc.

Que Aspecto da fé Bíblica Devemos Viver?

Tu deves ter notado que os três aspectos que distinguimos estão misturados na Bíblia e aparecem em medidas diferentes a cada personagem. Alguns são mais apocalípticos, outros mais radicais e individuais, e outros mais adeptos da sabedoria e da vida comunitária. A questão é, então, aprender a distinguir em nossa própria vida esses três aspectos e avaliar se nossas atitudes estão de acordo com nossas expectativas escatológicas. Isto é, como acreditamos que as coisas erradas podem mudar? Estamos agindo de acordo com essa nossa fé?

Minha opinião pessoal é que do apocalipsismo podemos aproveitar a fé de que esse mundo repleto de coisas negativas será transformado, e que Deus está nos esperando no fim para receber os “justos”. Mas essa esperança não deve resumir-se em passividade e nem tampouco culminar em violência. Outro ponto que merece destaque na opção pelo apocalipsismo é que a volta de Jesus, o arrebatamento, ou seja lá qual for a intervenção divina que se espera, não pode ser prevista. A atitude a se tomar é de vigilância, de esperança. Essa esperança de melhoria e a fé de que Deus não planejou tanta coisa ruim é sadia para todos nós.

Quanto ao ascetismo, creio que devemos modernizá-lo ou mesmo descartá-lo. Não acredito que o mundo será transformado pelo nosso isolamento, antes, ele nos escarnecerá. Não vejo valor algum em banhos rituais como o batismo, nem em isolamentos como fazem os monges ou os evangélicos em vigílias nos montes. Também não consigo imaginar nenhuma utilidade para os jejuns, para a assiduidade supersticiosa a todas as reuniões da igreja, ou para a castidade. Nem creio também, que o cristão de hoje deve abrir mão dos seus bens simplesmente por acreditar que a pobreza é uma virtude. Assim, em minha opinião, do ascetismo pouco se aproveita para nossos dias. Talvez a eventual prática da meditação e a abstenção de alimentos prejudiciais à saúde ou a produtos como cigarro e bebidas possa nos servir, mas em qualquer implicação espiritual. O perigo é que adotando o ascetismo em qualquer medida, sempre corremos o risco de escorregar para o rigor da lei, que sem qualquer motivo racional proíbe um de cortar o cabelo, outro de usar roupa vermelha, outro ver TV, outro de ir à faculdade, outro de se casar com pessoa de outra religião, outro de praticar esporte etc.

Porém, não há qualquer “contra-indicação” à adoção completa da religiosidade ética que predominava em Jesus e na primeira geração de cristãos (conforme os testemunhos textuais dos primeiros trinta anos de cristianismo). É desse aspecto da religiosidade bíblica que aprendemos a amar o próximo como a nós mesmos, e assim, se toda ação por nós praticada estiver condicionada por esse princípio do amor, não há como errar. O cristianismo ético baseia-se na vida real, trata dos problemas que as pessoas enfrentam no dia a dia e fala ao mundo em linguagem clara e sábia. Ele pode ser facilmente adaptado a cada nova geração, o que a torna viável e de fácil aplicação a toda cultura.

No cristianismo ético, não há criatividade para se criar animais mitológicos ininteligíveis que nunca são compreendidos e só levam a intermináveis discussõesteológicas, e nem há limites doutrinários que sem notarmos tornam-se abusivos e servem para que líderes opressores controlem as massas. Tudo é avaliado por um só critério: isso faz bem ao próximo? Então devemos fazê-lo. Isso faz mal ao próximo? Então deve ser rejeitado. Essa me parece a parte que devemos prestigiar da religiosidade bíblica; talvez, ela seja a única realmente necessária.

Eram estas as coisas que eu tinha a dizer hoje. Agora tu podes descartar o que leu, reler o texto para assimilá-lo com maior clareza, ou fazer logo sua opção e seu auto-exame. Seja qual for tua escolha, faze-a conscientemente. Decide o que vais vivenciar e o que pretendes descartar da Bíblia, e não te enganes pensando que alguém é capaz de ser tudo isso ao mesmo tempo, pois se tal coisa fosse possível, teríamos uma figura estranhíssima que certamente não desejaríamos imitar. A maneira distinta com que cada profeta, apóstolo ou messias da Bíblia montou sua própria religiosidade é sinal de que não estamos errando ao fazer isso; erramos mais quando abaixamos a cabeça e anulando a capacidade de discernir que Deus nos deu seguimos um padrão religioso que alguma igreja nos ditou. ¡Viva la revolución!

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O FUTURO A DEUS “NÃO” PERTENCE

Introdução

Antes de entrar no assunto desta mensagem, preciso fazer algumas considerações a meus leitores. Primeiro, sou um pesquisador e escritor do campo da religião, e tenho trabalhado em dois campos distintos simultaneamente: um deles é acadêmico, desenvolvo artigos científicos e no momento preparo minha dissertação de mestrado. O acesso a estes trabalho é mais restrito, pois estão sendo publicados em revistas científicas das faculdades brasileiras e são destinados a outros pesquisadores. Segundo, tenho escrito desde 2005 textos de pequena extensão que são bem mais acessíveis. Estes são publicados em igrejas cristãs e geralmente os divulgo em meu blog (www.compartilhandonoblog.blogspot.com). Os dois campos são distintos, um excessivamente acadêmico, outro prático, reflexivo e até devocional; mas eles também se tocam eventualmente. Algumas vezes, um texto acadêmico é resumido para alcançar um público não especializado (como fiz com o texto “Um Rei dos Nossos...”), em outras, um texto breve é re-trabalhado para transformar-se em texto científico (como foi o caso de “Jesus era contra o Divórcio?”).

O texto que abaixo apresento é um texto da classe “popular”, ou seja, apresenta uma reflexão breve, sem demasiada argumentação ou preocupação com a fundamentação das idéias. Uso assim esse instrumento para divulgar em forma escrita um pensamento antigo, que precisa ser aperfeiçoado e confrontado com a opinião de outros. Caso essas idéias sejam aprovadas nesse primeiro teste, penso na possibilidade de lhe aperfeiçoar.

Meu leitor pode estar se perguntando por que nos últimos textos me tornei tão formal. Neste caso, quis ser cuidadoso porque o que vamos ver é uma verdadeira “heresia”, um pensamento totalmente contrário àquilo que a igreja e mesmo os teólogos tradicionais pensam. Não estou tratando de um assunto que domino, mas expressando idéias que me parecem relevantes no âmbito teológico. Assumo o risco de receber críticas, na verdade, é o que espero, para saber quão coerente é esta minha idéia.


Conteúdo

Tenho reconhecida aversão às idéias pré-concebidas que a chamada “teologia sistemática” ensina aos estudantes de teologia. Me parece que falta transparência à teologia sistemática, pois tais idéias não são apresentadas como hipóteses, o que realmente são, desenvolvidas por pensadores de várias gerações. Tais idéias são apresentadas como certezas, método de educação antiquada que impede o aluno de pensar por si mesmo, já que estará sempre influenciado pelas idéias pré-estabelecidas dessa teologia.

O caso que tenho em mente enquanto escrevo é a idéia de que Deus é Onisciente (que aceito), que conduz à idéia de que ele sabe tudo sobre o passado, o presente e o futuro (que rejeito). Os teólogos crêem que Deus vê o “tempo” em sua totalidade, conhecendo tudo o que acontece do princípio ao fim da história. Supostamente tais conceitos tiveram origem na Bíblia, mas sinceramente não sei como essa idéia pode ser defendida com a Bíblia. Que textos falam disso?

Outra vez, quero enfatizar que aceito a idéia de que Deus conhece todas as coisas, o que questiono é que Deus conhece o futuro, o que em minha opinião, não existe. Sempre que debato este tema, cito o mesmo exemplo, e ele não poderia faltar aqui, onde quis registrar exatamente essas minhas dúvidas. Meu exemplo começa com uma pergunta: Deus conhece, por exemplo, a constituição física dos extra-terrestres? Se existem extra-terrestres, ele a conhece, mas se eles não existem, então Deus não deixa de ser Onisciente se não conhecer o que não existe. Assim, para mim Deus conhece todas as coisas, mas não conhece o futuro simplesmente porque ele não existe.

Um leitor da Bíblia que se preze, antes de concordar comigo, vai perguntar coisas como: E as profecias? E o Apocalipse? Deus não anuncia na Bíblia as coisas que ainda virão e, portanto, as conhece com antecedência? Bem, primeiro a profecia não é sempre uma previsão futurista. Na verdade, a maioria das profecias são locais e podem ser explicadas em termos humanos. Se um economista moderno diz que a próxima potência mundial será a China, isso não precisa ser atribuído à inspiração divina; ele observou, estudou, e já pode dizer o que virá, embora possa se enganar e o diga sem riqueza de pequenos detalhes. Na profecia do Antigo Testamento, a inspiração divina não anula esse elemento humano, o dom de observação e a inteligência do profeta. Com base na fé em um Deus de direito e justiça, e com base na observação astuta do cenário político nacional e internacional, os profetas avaliavam as injustiças dos seus dias e o papel internacional exercido pelo seu país, e previam o fim das dinastias pela tomada da nação por um império muito superior militarmente, que aliás, já estava dominando diversas outras nações mais poderosas que Israel. Mais que previsões futuristas, a profecia me parece a aplicação quase sempre precisa dos princípios lógicos de causa e efeito, embasadas na fé em um Deus bom.

Sobre a literatura apocalíptica, a questão é um pouco diferente. As previsões apocalípticas não podem ser facilmente localizadas nem no tempo nem no espaço, motivo pelo qual a interpretação dada aos seus símbolos muda de geração para geração. Como os apocalípticos tratam especialmente do fim dos dias, suas previsões não se concretizaram até hoje, e não há nada além da fé que nos faça crer que ainda se concretizarão. Mas supondo que Deus lhes tenha revelado seus planos para o fim dos tempos, ainda temos que lidar com a linguagem mitológica e simbólica que empregaram para descrever suas visões, repletas de ambiguidades. Assim, mesmo crendo, também não vejo a previsão apocalíptica como prova de que o futuro já está escrito. Os visionários vislumbraram animais de muitas cabeças, chifres e olhos, e não as coisas como realmente serão. Quer dizer que o plano divino lhes foi apresentado por meio de representações, e não como um filme dos fatos, que não existem. Deus lhes contou ludicamente o que pretende realizar, mas não lhes mostrou nada de concreto.

Outra questão precisa ser esclarecida: Se para mim não há futuro, isso não quer dizer que Deus não faz planos para o futuro. Todos fazemos planos, mas Deus, o Criador, não só faz planos como assegura que seus planos se cumprirão. Se Deus porventura fizer previsões, elas não são relatos de fatos prontos, mas de planos que Deus pretende cumprir. Deus é, portanto, capaz de fazer previsões, mas também pode mudar de idéia sem ter que reescrever o fim já determinado. Talvez isso traga alguma luz à eterna questão do “arrependimento” de Deus, que intriga todos os que começam a ler a Bíblia.

Minha conclusão é que não há destinos escritos, não há predestinações, mas projetos divinos que devem acontecer. Quando o Senhor anuncia algo que quer fazer, nós podemos dizer que já sabemos o futuro, mas ninguém, nem mesmo Deus, vê o futuro. Se algum vislumbre do porvir nos for concedido, não significa que este futuro está determinado e nada é capaz de alterá-lo. Em muitos casos, o plano divino é feito a partir das ações humanas, e mudam de acordo com a mudança das nossas atitudes.

Diante desta reflexão, não são necessárias grandes mudanças. Deus continua sendo o Criador Soberano do universo, e nosso destino continua em suas mãos. O que realmente pode mudar é nossa atitude imediata, já que deixando de se conformar com um futuro pré-estabelecido que nos leva a esperar passivamente, aceitamos a responsabilidade de trabalhar em todo o tempo em concordância com a vontade divina para que no final, o melhor destino possível nos seja concedido. O futuro, então, está sendo escrito hoje, e Deus espera que nós façamos o melhor, para escrever um final feliz para nossas histórias.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

JESUS ERA CONTRA O DIVÓRCIO?

Desta feita gostaria de falar sobre o texto de Mateus 5.31-32, que trata da sempre polêmica questão do divórcio. O assunto é relevante para a atualidade mas gera ainda muitas controvérsias, que como veremos, não se devem ao texto bíblico em si, mas às nossas próprias tradições. Antes de começar, para fazer justiça, devo dizer que boa parte das considerações que farei já haviam sido publicadas bem antes de mim por Gerhard Lohfink, que ao escrever o livro Agora Entendo a Bíblia: para você entender a crítica das formas (São Paulo: Paulinas, 1978), tratou do mesmo texto e divulgou conclusões muito semelhantes. Claro que eu também divulgo algumas novidades, ou não se justificaria meu estudo e eu apenas lhe indicaria a leitura da obra de Lohfink. Ao leitor, peço que veja este primeiro parágrafo como um prefácio, e o próximo como uma introdução metodológica. Peço desculpas por ter que introduzir o assunto falando de algumas questões mais técnicas, colocando o leitor a par de pressupostos importantes para o estudo dos evangelhos, que caso não fossem comentados, poderiam provocar dúvidas e parecer que nos contradizemos. Porém, faço isso de maneira sucinta, num só parágrafo; portanto, não desista da leitura nesta primeira página, seja perseverante. Depois dela cito o texto de Mateus 5.31-32 numa tradução minha; não se assuste se alguma coisa estiver diferente da versão que você conhece da sua Bíblia, eu vou explicar aos poucos estas diferenças. Aí sim, vou direto ao assunto evitando demasiados rodeios. No final faço algumas considerações práticas que são as partes mais importantes deste estudo.

Então, devemos dizer de pronto que a passagem sobre Jesus e o divórcio está presente não somente em Mt 5.31-32, mas também em Marcos 10.1-12 e Lucas 16.18. Poderíamos estudar todos os textos, ou escolher um deles. Já que escolhemos Mateus, é necessário justificar essa escolha. Em geral, os estudiosos concordam que sempre que um texto aparece em Mateus, Marcos e Lucas, a versão de Marcos é a mais antiga, e que os demais autores teriam copiado seu conteúdo uns 20 ou 30 anos depois. Porém, vê-se neste caso que a versão de Marcos está enriquecida com um contexto narrativo criado por ele próprio, o que torna o texto mais extenso. Nas versões de Mateus e Lucas, estão preservadas somente as palavras de Jesus, o que leva-nos a crer que aí temos uma versão mais original do dito de Jesus, fazendo-o mais útil para nosso propósito. Em seguida notamos que a versão de Mateus é mais completa que a de Lucas, que omite a citação à Lei do Antigo Testamento. Por tudo isso, preferimos Mateus para este estudo, embora as conclusões alcançadas aqui possam se aplicar à análise dos outros evangelhos sem maiores problemas.

Mateus 5.31-32

“E foi dito: ‘O que despede sua mulher, dê-lhe certidão de divórcio’. Mas eu vos digo que todo o que despede sua mulher (exceto caso de relações sexuais ilícitas) a faz adulterar, e o que casa com a despedida é feito adúltero”

Procurarei explicar a partir daqui o texto em si, mas deixa-me situar textualmente as palavras de Jesus primeiro: Estamos lendo um texto que faz parte de um conjunto de textos que vai de Mt 5.17-48, onde Jesus lembra uma série de mandamentos conhecidos do Antigo Testamente e os re-interpreta. É fácil notar uma estruturação no texto através da repetição do refrão: “Ouvistes que foi dito... Porém eu vos digo...”. Assim, o evangelho de Mateus apresenta Jesus como um seguidor da Lei, mas que possui uma interpretação própria desta Lei, que diferenciava-o e a seus seguidores dos demais judeus. Os mandamentos que Jesus interpreta e radicaliza são sobre homicídio, adultério, divórcio, juramentos, vingança e amor aos inimigos. Nosso tema no momento é apenas o divórcio.

Essas observações já nos dão alguns caminhos para interpretar o texto: Jesus cita um mandamento de conhecimento de toda a sua audiência: “E foi dito: ‘O que despede sua mulher, dê-lhe certidão de divórcio’”. Evidentemente ele está citando de memória uma tradição jurídica de Israel, que está baseada apenas na primeira parte do que podemos ler em Deuteronômio 24.1-4. Vou usar minhas próprias palavras para explicar esse texto: A Lei diz que um homem podia repudiar sua esposa caso não se agradasse mais dela, achando algo de inconveniente (Dt 24.1). Sem dúvida, esse “inconveniente” (hebr. ‘ervah) é uma palavra de interpretação ambígua que já nos tempos de Jesus gerava controvérsias. Poderíamos traduzir por “vergonha”, ou seguir outras traduções que o expressam por “coisa indecente”, “imoralidade sexual” ou “coisa feia”. A maneira como a interpretamos pode mudar completamente o sentido do texto, e nos dias de Jesus os homens justificavam seus divórcios associando a esta palavra qualquer motivo irrelevante (Lohfink, pp. 139-140).

Entregando à mulher uma carta, qualquer homem podia mandar a mulher embora, sem ter que dar qualquer explicação a juízes ou sacerdotes. Ela não é tão bonita quanto aquela? Tchau! Ela já não é tão jovem ou está sempre mal humorada? Adeus! Ou será que ela está com uma hemorragia que não cessa, que os curandeiros não resolvem, e por isso não lhe serve mais sexualmente? Tudo podia dar vazão a um divórcio, e a Escrituras, segundo a interpretação predominante, lhes autorizava a agir assim.

Notem que só os homens tinham esse poder. Na verdade, os textos de Deuteronômio e Mateus são escritos sob a ótica masculina, e esse é um elemento essencial para que os interpretemos. Jesus está, portanto, falando aos homens da sua geração, que certamente conheciam e aplicavam a Lei do Antigo Testamento a seus matrimônios da maneira que lhes era conveniente. Contudo, sob a ótica feminina as coisas seriam interpretadas de maneira bem diferente.

Em geral, a mulher no mundo antigo dependia economicamente do marido. Embora hoje os antropólogos acreditem que elas tinham maior autoridade na direção da casa, da família e na administração dos bens, a natural função matriarcal as impedia de viverem de maneira independente. Mulheres independentes, no antigo oriente, eram tratadas como prostitutas, mulheres de reputação questionável. Veja, por exemplo, o caso de Raabe, que é chamada de prostituta, mas que talvez fosse apenas uma mulher solteira, uma costureira independente economicamente, que vivia com sua família (Js 2.5,6,13). Como mais de 90% da população vivia do produto escasso que com muito suor tirava da sua roça, uma mulher despedida pelo marido via o novo casamento como a melhor opção de sobrevivência.

É exatamente isso que Jesus revela com suas palavras. Se o lermos com atenção, veremos que o texto diz que os homens estavam forçando as mulheres ao adultério quando se divorciavam delas (... o que despede sua mulher a faz adulterar). Mandar a mulher embora era o mesmo que obrigá-la ao novo casamento.

Outro ponto curioso: O adultério só é aplicado à mulher. Outra vez, a tradição bíblica é machista, pois os homens que despediram suas mulheres certamente tomavam outras esposas e não eram chamados de adúlteros por isso (Lohfink, p. 140). O adultério de Deuteronômio era um crime apenas feminino, e a Lei visa proteger a honra dos homens e também sua propriedade, e não a manutenção da instituição familiar, como hoje gostamos de pensar romanticamente. Esse aspecto machista da Lei Jesus não condena ou ao menos não menciona aqui, mas ele vê um mal ainda maior que estava por trás de toda essa tradição.

Depois, o texto do Antigo Testamento e o de Mateus pioram ainda mais a vida das mulheres ao dizer que um homem não pode se casar com uma mulher divorciada, ou torna-se adúltero também. Pronto! Agora, as mulheres que eram despedidas por qualquer capricho nem podiam encontrar outro marido para lhes sustentar! Os homens queriam mulheres virgens, e não repudiadas. Mas note que em minha tradução o texto diz que “... o que casa com a despedida é feito adúltero”. Deixei o texto assim de propósito, porque o verbo “adulterar” está na voz passiva, indicando que este homem que assume a mulher despedida como esposa é também vítima do primeiro marido, que a despediu.

Enfim, a Lei bíblica era seguida nos dias de Jesus, mas o resultado desta Lei era uma grande injustiça. Mulheres eram condenadas à desonra e à miséria; outras eram feitas adúlteras, assim como seus novos maridos; e tudo em nome de Deus. A verdade que Jesus traz à luz é que a mulher que se casa de novo e o homem que desposa uma divorciada, embora não sigam a Lei e sejam chamados de adúlteros, são melhores do que o religioso que com apoio nas Escrituras despediu sua mulher por qualquer motivo.

Coloquei entre parênteses em minha tradução de Mateus 5.31-32 algumas palavras que são reconhecidas por todos os estudiosos como um adendo de Mateus, porção que não estava no texto original que ele copiou de Marcos. Por meio deste acréscimo, me parece que o grupo de Mateus voltara a tolerar a “carta de divórcio” e a conseqüente punição da mulher somente em caso de “relações sexuais ilícitas”, sejam essas relações o que forem. Acho que essa correção não foi uma boa idéia de Mateus, pois esse adendo poderia gerar novas interpretações duvidosas, e invalidar toda a mensagem de Jesus conduzindo-os de volta à antiga condição. Mas deixemos esse problema de lado e sigamos à conclusão?

O Jesus de Mateus não vê problema na Lei do Antigo Testamento, embora ela seja, como já mostramos, escrita exclusivamente sob uma ótica masculina. O adultério só existia quando mulheres se envolviam com outras pessoas que não seus primeiros maridos, ou quando homens se envolviam com mulheres divorciadas. Porém, havia uma brecha na Lei que levou a hipocrisia masculina a um nível intolerável. Eles despediam suas mulheres não quando elas os traíam, mas por qualquer coisa, sem preocupar-se com a vida delas depois disso. Era uma atitude que fundamentavam citando a Bíblia, mas que na realidade era motivada por puro egoísmo, por uma completa ausência de amor humano. Jesus volta-se contra essa “brecha”, revela a crueldade que está por trás da interpretação adotada pelos homens do seu tempo.

Segundo esta leitura, a ação de Jesus não parece dedicada em primeiro plano à questão do divórcio ou ao adultério, mas à injustiça resultante de divórcios injustificados. Daí podemos fazer algumas considerações mais práticas, para que este estudo nos sirva bem no dia a dia:

1) Jesus não discute a validade da Lei, mas a interpretação que se faz dela, mostrando-nos como é fácil usar a Bíblia para justificar nossos atos injustos. Eis aí uma evidência de como é importante levar a sério o estudo da Bíblia. Em todo caso, não é preciso saber grego, mas interpretar a Bíblia juntamente com a vida, priorizando sempre o amor ao próximo, mesmo quando amar significa deixar passar algum versículo “despercebido”;

2) Se no exemplo que lemos Jesus mostrou-se contra o divórcio, foi porque o resultado deste ato era a incapacidade de ser feliz das mulheres depois de divorciadas. Hoje esse problema praticamente não existe fora da igreja, pois as mulheres são independentes economicamente, ou podem ser se assim quiserem. O mesmo argumento não pode ser empregado para defender a indissolubilidade do matrimônio nos dias de hoje;

3) Jesus não atacou diretamente a carta de divórcio de Moisés, seu problema era salvar a vida de muitas mulheres que sofriam por tal costume. Hoje, muitas pessoas querem abolir a opção do divórcio tratando-o como pecado imperdoável, mas ao fazerem isso acabam produzindo novas injustiças com pessoas que se divorciaram. Tratar quem se divorciou com preconceito, negar-lhes novas oportunidades, é em certa medida voltar à injustiça que Jesus condenou. Veja que Jesus tratou o segundo marido “adúltero” como uma vítima, e não o condenou. Meu conselho é este: prefira a companhia dos divorciados do que a companhia dos moralistas, lembre-se que Jesus andou com prostitutas, mas não com fariseus;

4) Pelo menos no texto que lemos Jesus não mudou o conceito machista de adultério que sua sociedade tinha; mas julgamos que ele estava no caminho. A busca por justiça de Jesus era também uma luta pela dignidade das mulheres. Nós já caminhamos dois mil anos e temos superado a maior parte desse problema; temos mudado essa desigualdade de gêneros e hoje reconhecemos que todas as pessoas possuem os mesmos direitos. Assim sendo, quando lemos um texto como esse em nossos dias, temos que escolher entre duas opções: Ou nós concertamos o machismo exposto na Lei bíblica negando qualquer “carta de divórcio” e aceitamos que os homens podem ser adúlteros, proibindo assim qualquer tipo de relacionamento fora do primeiro casamento, ou damos “carta de divórcio” a homens e mulheres, direitos iguais de começar de novo suas vidas em novos relacionamentos. Em ambos os casos, estejamos também conscientes de que estamos nos distanciando do que a Bíblia realmente diz; mas se optarmos pela segunda opção, ao nos distanciarmos da Lei também nos aproximamos do amor que Deus nos ensinou e que supera toda aplicação rígida de mandamentos.

Por hora já basta! Minha tentativa nestas páginas foi usar a prática exegética que geralmente é tão acadêmica, numa linguagem mais acessível. Por isso não cito textos gregos ou hebraicos, não examino variantes textuais nos manuscritos, não uso notas de rodapé, não forneço referências bibliográficas para todas as afirmações que faço, etc. Peço, então, desculpas aos amigos exegetas que esperavam tais coisas deste breve trabalho. Coloquei-me aqui a serviço da igreja, e não dos acadêmicos, coisa que raramente tenho feito. O objetivo deste estudo, que preparei em apenas 3 horas, será atingido quando ao ser lido ele dissolver algumas dúvidas comuns dos cristãos de hoje, quando ajudar as igrejas a aplicar os textos bíblicos de maneira mais coerente com as exigências da vida moderna, e quando consolar o coração de pessoas que como eu divorciaram-se, e ouviram de outros que cedo ou tarde acabariam por pagar pelo pecado cometido. Creiam que é possível ser mais feliz depois do divórcio do que antes dele, e que não há nada de demoníaco em aceitar essa felicidade.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O MUNDO DÁ VOLTAS

Nascido na periferia com uma moradia sonhou
Queria jogar na Espanha e comida e sua mesa faltou
Criado pela mãe solteira, desde cedo ele trabalhou
Amor com açoite ele teve até que a idade chegou

E o menino pobre um dia falou: Deus, como fui feliz!

Nascido bebê de provêta, teve tudo que desejou
Sua casa era grande e formosa e comida em sua mesa sobrou
Criado pela empregada, desde cedo ele mandou
Toda regalia ele teve até que idade chegou

E o menino rico um dia falou: Deus, como fui infeliz!

O mundo dá voltas. Hora é sim, hora é não
Por que tanto importa viver de ilusão?



Letra da música "O Mundo dá Voltas", que escrevi em 2007.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Escolha seu Messias

Nos primeiros anos da era cristã, o evangelho mais conhecido do mundo não era o que narra os eventos da vida de Jesus de Nazaré. O evangelho era também o termo empregado para se referir ao dia do nascimento de Otávio Augusto, imperador de Roma (30 a.C. – 14 d.C.). Há narrativas que contam que este Otávio foi concebido de maneira milagrosa, filho do deus Apolo com Ácia, sua mãe. Ele era, portanto, embora homem, um filho de deus. A data do seu nascimento também tornou-se notória com o advento da boa nova, e a província romana da Ásia Menor passou a celebrar o ano novo em 23 de setembro. Augusto era o Messias dos romanos, e apresentava-se como salvador adornado por grande riqueza enquanto sustentava sua hegemonia através de incomparável poderio militar.

O evangelho de Jesus de Nazaré, não tão original como gostaríamos que fosse, repete de maneira inegável alguns dos principais elementos que constituem as narrativas da vida de Augusto. Neste caso, não queremos discutir a questão da veracidade ou falsidade de uma ou outra narrativa, pois nenhuma delas nos dá condições de julgar sua historicidade, já que ambas, a que gostamos e a que repudiamos, foram igualmente escritas para servir de propaganda literária para pessoas que já eram veneradas. O irlandês estudioso do cristianismo primitivo John Dominic Crossan ressalta com razão, que a escolha de uma dessas narrativas e a afirmação de que a outra é falsa, é um problema ético.

Mas nestas linhas a comparação entre as duas propagandas que chamamos de messiânicas nos serve para destacar outro aspecto. De maneira muito apropriada, os cristãos primitivos fizeram questão de utilizar-se de fatores sócio-econômicos completamente contrários aos da narrativa de Augusto para narrar as ações do seu próprio Messias. Contrariando todas as expectativas humanas, alguns judeus adotaram como Messias um homem que nascera num recipiente utilizado para alimentar os animais, que trabalhara em atividade braçal num pequeno vilarejo da Galiléia, que jamais teve grandes posses e que para piorar, foi condenado por rebelar-se contra o império e crucificado ao lado de bandidos, com os quais os seus algozes certamente o confundiam.
Entretanto, com o tempo a estranheza do Messias de Nazaré foi sendo “corrigida”. A igreja transformou a imagem da manjedoura em esculturas coloridas; a cruz, instrumento de tortura e morte, foi banhada em ouro e tornou-se estandarte de poder; a comunhão de mesa onde os amigos dividiam pão e vinho tornou-se um verdadeiro culto aos mortos; e aquele que não tinha onde reclinar a cabeça passou a ser indiretamente o dono de suntuosas obras arquitetônicas. Enfim, embora sempre se pensou que o Messias dos camponeses venceu o Messias imperial, concluímos que na verdade muitos adoram o divino imperador chamando-o de Jesus.

Procuro não me importar com a opção religiosa que as pessoas fazem, pois considero pura soberba dizer que só eu tenho a “verdade”; mas me incomoda a maneira como essa sutil inversão messiânica produz consequências negativas no cristianismo que nos rodeia. Coerentes com a opção consciente ou inconsciente pelo Messias imperial, os cristãos de hoje acreditam que a paz pode ser feita por meio da espada, que a justiça divina se realizará pelo extermínio violento de todos aqueles que não adoram o seu imperador, crêem que a vinda do reino messiânico significa prosperidade, e que toda autoridade imperial é digna de irrestrita submissão.

Ora, só posso fazer agora o apelo óbvio que continuamente fazemos, para que voltemos a Jesus de Nazaré, o galileu que sempre continuará escandalizando aqueles que o compreendem. Nosso Messias foi um homem pobre, que chamava de bem-aventurados os miseráveis ou indigentes, e nos estimulou a aceitar a simplicidade em nome da igualdade humana.

Como escreveu J. D. Crossan, temos que escolher nosso Messias, seja ele alguém como o antigo imperador Otávio Augusto ou Jesus de Nazaré, cada um com sua própria proposta de salvação. Acrescento que não há nada de errado se você quer confiar no Messias imperial, mas que gostaria que se esse for o caso, que o chame de Augusto ou qualquer outro nome nobre, e não de Jesus. Quem escolhe Jesus, deve comprometer-se a lutar contra o domínio imperial e contra toda desigualdade humana, pois este é o caminho por ele indicado. Agora de maneira consciente, escolha o seu Messias e corra atrás da sua salvação.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

JOGANDO PELO EMPATE

Notei que é com grande intensidade que todos almejam a vitória. Somos treinados desde a infância a desejá-la mais que tudo; estamos acostumados a parabenizar e admirar os vencedores, e sonhamos com a nossa vez. A constatação seguinte é que a vida, em grande medida, não passa de uma constante batalha rumo à vitória. O curso universitário é para muitos apenas uma vereda que precisa ser trilhada para se alcançar essa posição, e não uma preparação para uma carreira profissional competente. Lêem-se cada vez mais livros de auto-ajuda não por serem boas literaturas, mas porque são manuais que prometem nos mostrar caminhos eficazes para nos tornarmos vencedores. E as loterias então, meios eficientes para arrecadar dinheiro de sonhadores. O mesmo pode ser dito até dos relacionamentos amorosos e das religiões, afinal, se não vencemos nessa vida, consolemo-nos com a esperança de que seremos vencedores pelo menos na próxima...

Todavia, há um problema a se considerar neste assunto: O verbo vencer pertence a um contexto próprio, o dos jogos, dos estádios, das competições, e não me parece que tenha sido criado para ser aplicado a todas as áreas da vida como hoje fazemos. Consideremos por exemplo um campeonato de futebol: Vinte equipes disputam um único prêmio. Mesmo que todas elas desfrutem da sensação momentânea de vitória ao derrotarem outra equipe nalguma partida, no final do campeonato há um só vencedor e dezenove perdedores. As chances são poucas, portanto. Isso é pior ainda se pensarmos que não basta vencer o campeonato de futebol se ele não for o da primeira divisão, o que quer dizer que não são apenas dezenove os perdedores, mas centenas de equipes que sonham em um dia conquistarem aquele que é o maior prêmio do futebol. Mas o campeão nacional é também um provável perdedor no cenário internacional, e assim, o funil vai se estreitando até que quase todo mundo perde.

Bem, o que quero dizer é que há uma expectativa de vitória em nós que para a grande maioria da população nunca será satisfeita plenamente. Lutamos para transformar os outros em perdedores, mas parece que sempre há alguém capaz de nos superar. A solução que encontramos para não vivermos decepcionados com nossos fracassos é inventar nossos próprios campeonatos. Se eu não posso vencer nos grandes campeonatos da vida, eu venço um pequeno torneio que inventei em que só eu e outro, que naquela atividade posso superar, competem. Quer exemplos? Se eu não posso ser um grande atleta como aqueles que são exaltados na tv, treino no videogame mesmo e chamo meu vizinho para que eu o detone. Se eu não posso ser líder de grandes equipes em uma multinacional, me satisfaço dando ordens para os dois funcionários da pequena empresa que montei ao me endividar com um empréstimo. Se eu não pude ser pastor de uma grande igreja, alugo o salão do bar que fechou na minha rua e me torno o guia espiritual da minha família e mais meia dúzia de pessoas; e mais, se essa nova grande denominação não der certo, reduzo minhas metas pessoais e luto para ser o grande detentor do direito de estar à frente do importante ministério de vender pipocas na cantina de alguma igreja. Tudo isso é loucura, nós forjamos vitórias insignificantes e lhes damos grande valor, mas no final continuamos perdendo as grandes batalhas. Mas esse é o meio que encontramos para sobreviver bem conosco.

Penso que essa competitividade que nos domina e é tão estimulada traz mais prejuízos que benefícios à sociedade. As pessoas brigam no jogo de futebol do campo mal-acabado do bairro como se aquele jogo fosse a coisa mais importante das suas vidas, se ofendem mutuamente por causa dos videogames, encerram amizades porque alguém roubou seu lugar atrás do importante carrinho de pipocas que contribuía mensalmente com vinte reais para o trabalho social da igreja. Na verdade, os conflitos foram criados pela importância exacerbada que damos a condição do vencedor.

Na antiguidade bíblica, entre a maior parte da população, que era camponesa e em geral produzia apenas o necessário para a própria subsistência, acreditava-se que os bens eram limitados. Isso quer dizer que para eles, agricultores que não tinham tratores ou defesas contra pragas, a natureza só podia produzir o suficiente para que todo ser humano vivesse. Em decorrência desse senso comum, os pobres viam as elites como inimigas, pois se os ricos tinham mais do que realmente precisavam, estavam tirando o que era necessário para outrem. Não se reconhecia méritos na riqueza; o rico não era alguém que venceu na vida e merece admiração, mas alguém que de maneira avarenta tirou o que devia estar nas mãos de outros. Daí lemos na Bíblia que não se deve acumular bens sobre a terra (Mt 6.19-21), pois isso é avareza; lemos que os ricos dificilmente entram no reino de Deus (Lc 18.25), pois promovem a miséria. Não acho que eles estavam completamente certos, nem completamente enganados, mas hoje as coisas são bem diferentes. Geralmente, mesmo entre os pobres, os empresários de sucesso tornam-se grandes celebridades, exemplos que devem ser seguidos. As palestras dos administradores que obtiveram grandes lucros são as mais procuradas (afinal ele deve saber o caminho da vitória), e já não nos perguntamos se eles enriqueceram às custas dos outros. Se os funcionários dos grandes supermercados permanecem estacionados na pobreza exercendo a função de duas pessoas pela metade do salário, não importa, nós nunca nos colocamos no lugar dessas pessoas exploradas, sempre nos imaginamos no topo, no lugar do presidente da empresa. A riqueza agora é uma vitória, e as vitórias são sempre bênçãos de Deus, mesmo quando há muita sonegação de impostos e exploração da pobreza e do alto desemprego do país.

Vejam que coisa interessante escreveu o apóstolo Paulo, que era um judeu helenista habitante dos ambientes citadinos onde se construíam os ginásios de esportes: “Não sabeis vós que os que correm no estádio, todos, na verdade, correm, mas um só leva o prêmio? Correi de tal maneira que o alcanceis. E todo aquele que luta de tudo se abstém; eles o fazem para alcançar uma coroa corruptível, nós, porém, uma incorruptível” (1Co 9.24-25). Por um lado ele reconhece que a competitividade humana, geralmente conflituosa, gira em torno de coisas sem valor. No entanto, Paulo pensava ser alguém que competia por algo que realmente tem valor, uma coroa incorruptível. Ao empregar esta metáfora, ele demonstra que como homem de certa forma elitizado, morador das cidades, que estava entre os poucos alfabetizados do seu tempo, que fora treinado para ser um mestre entre os judeus da diáspora, também estava infectado por essa doença que é a competitividade humana. Até Paulo almejava sempre a vitória, e exortava os ouvintes a só se contentarem com a vitória. A derrota é, ainda hoje, como ir para o inferno.

Vamos piorar as coisas. Jesus também, para falar de coisas transcendentes, usa frases que nos permitem ver como ele e seus seguidores, homens marginalizados que ansiavam por condições de vida mais digna na terra, lamentavam seu presente estado de derrotados sociais. Ele diz que no reino de Deus as coisas seriam diferentes, que os últimos seriam os primeiros (Mc 10-31). Esta inversão de papeis obviamente não resolveria o problema da desigualdade nem mesmo no reino de Deus, mas castigaria os opressores e tornaria aqueles derrotados em vencedores. No texto já citado de Mateus 6.19-21, o estímulo para que acumulemos tesouros no céu também implica a desigualdade entre os habitantes celestiais. Se até no céu alguns possuem tesouros e recebem galardões, as diferenças entre classes permanecerão. Na verdade não creio que no céu exista tais distinções, mas infelizmente até a religião, como fenômeno humano, expressa-se por meio da linguagem humana que sempre está mergulhada na competitividade, que alimentada pela ganância e pelo egoísmo, é o alicerce da desigualdade.

Eu diria que nós precisamos urgentemente aprender que vencer não é essencial. Temos que nos acostumar com a realidade, que nem sempre permite que sejamos os primeiros. Temos que abandonar a ânsia cega pelos primeiros lugares, que transformar nossa visão competitiva de mundo e compreender que todos, tanto os primeiros como os últimos, são filhos de Deus. Gostaria que no lugar da competitividade, vivêssemos pela mutualidade. Não é 1Coríntios 9.24 que devia nos guiar, mas textos como Lucas 3.11, onde João Batista diz: “Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo” (Lc 3.11). Nossa luta real é contra nós mesmos, e temos que nos empenhar para derrotar nossas fraquezas e nos aproximar do nosso criador, sabendo que no final, o primeiro lugar no pódio de Deus cabe todo mundo. Quanto às relações interpessoais, tentemos nos livrar dessa cultura competitiva que nos conduz a tantos conflitos internos e externos, vamos aprender a lutar pelo empate, o único resultado capaz de deixar todos felizes.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A PALAVRA DE DEUS E A INTERMEDIAÇÃO HUMANA

Senti a necessidade de escrever sobre este tema porque novamente me defrontei com a dificuldade que os leitores cristãos sentem quando precisam lidar com a Bíblia como ela realmente é. Quero dizer que quando estou falando sobre os textos bíblicos e por acaso tenho que ser honesto e dizer, por exemplo, que muitas referências geográficas dos textos estão equivocadas, que os dados históricos dos evangelistas não condizem com a verdade, que os detalhes topográficos geralmente não passam de estratégias usadas pelos escritores bíblicos para ilustrar suas narrativas, vejo nos olhares dos meus ouvintes que o que digo causa-lhes consternação. Pior ainda fica quando vemos uma profecia não cumprida, uma contradição irreconciliável entre dois textos sinóticos, ou quando temos de admitir que algum herói bíblico provavelmente não passa de um personagem fictício, que algum texto que incita a violência não devia estar na Bíblia..b. Este choque, com o qual provavelmente terei de lidar durante toda a vida, é um problema que merece nossa imediata atenção.

Talvez este primeiro parágrafo tenha lhe causado náuseas. Talvez estejas me pedindo provas do que digo. Não temos tempo para exemplificar tudo isso aqui, mas se este foi o seu caso, o que tenho a dizer ser-lhe-á muito útil.

Os cristãos evangélicos estão bastante familiarizados com os sermões. Todas as semanas eles ouvem pregadores abrirem as Bíblias e a partir da leitura desenvolverem suas admoestações que visam edificar a vida dos ouvintes. Nesta prática é comum ouvirmos os preletores afirmarem que o que dizem é Palavra de Deus. Os pregadores sabem que o processo para a preparação de um sermão exige boa dose de meditação e trabalho humano; sabem também que ao longo dos anos eles evoluem, e que sempre há sermões pregados que não pregariam outra vez. Mesmo assim, sabendo que o exercício da pregação é uma prática tão humana, o resultado é fundamentado sobre a autoridade divina. A igreja também sabe disso. Todo ouvinte experimentado pode se lembrar de coisas boas e ruins que já ouviu através dos sermões, e nem por isso se questiona a autenticidade dessa Palavra de Deus. O ouvinte sábio está consciente de que deve reter apenas o que for bom, atribuindo as demais coisas à mente do pregador, que é humana e, portanto, propícia aos erros.

Agora, pergunto onde é que está a diferença entre o sermão pregado nas igrejas praticamente todos os dias e a Bíblia? Não são ambas Palavras de Deus? Na verdade, os cristãos sem notar criam diferentes níveis de Palavra de Deus. Há uma Palavra de Deus que é inerrante, imutável, perfeita... esta é a Bíblia; e há também a Palavra de Deus que é intermediada pelos homens, os sermões, que podem ser recebidos com algum senso crítico. A questão é que essa distinção entre as diferentes categorias de Palavras de Deus é totalmente arbitrária, sem critérios, irracional. Todos sabemos que a Bíblia, assim como os sermões, foi criada através da intermediação humana, o que a torna uma criação conjunta de Deus e homens. Não podemos assegurar que a Bíblia, uma verdadeira coleção de sermões de dois milênios de idade, é superior àquilo que hoje se recebe de Deus.

Outra vez a nossa tradição religiosa, nossas heranças católicas e medievais que nos legaram o canôn e muitos outros dogmas, nos enganaram. Elas nos levaram a ignorar a real constituição do livro que chamamos de Palavra de Deus. Deixe-me dizer que tenho dedicado minha vida ao estudo e ensino dos textos bíblicos; que acredito que ela é a Palavra de Deus e que sua mensagem pode transformar o mundo; todavia, aprendi a encarar os fatos. A Bíblia, penso, foi criada por iniciativa divina, mas tal criação foi fortemente influenciada pela intermediação humana pela qual passou. Agora, quando lemos a Bíblia, temos que lê-la como se estivéssemos ouvindo a sermões antigos, procurando separar aquilo que Deus ali colocou para nos guiar daquilo que os homens, fazendo o melhor que podiam, incluíram por conta própria e permissão de Deus.

Gostaria muito, se for o caso, de me sentar ao lado do meu leitor a partir de agora e começar a ler a Bíblia com essa postura sóbria que proponho. Descobriríamos juntos como Deus falou e continua falando através dos homens, com a finalidade de que o buscássemos aqui mesmo, no cotidiano, no convívio com pessoas que têm sido sensíveis ao seu Espírito.

sábado, 25 de abril de 2009

O INTERDITO DA PIRATARIA NA IGREJA CRISTÃ: SUBMISSÃO PASSIVA À OPRESSÃO

Minhas opiniões em relação à pirataria sofreram mudanças radicais nos últimos meses, principalmente sob a influência de um pequeno artigo que li há aproximadamente quatro meses intitulado A Pirataria e o império. O autor do artigo é Jung Mo Sung, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo; seu texto foi publicado pela editora Paulus num livro chamado Cristianismo de Libertação, de 2008. Na verdade, a leitura que fiz foi breve, e nem posso mais lembrar-me das palavras do autor. No entanto, este texto me conduziu a refletir sobre o tema da pirataria durante esses últimos meses, até que hoje não pude deixar de registrar aqui meus atuais pontos de vista. Portanto, de antemão digo ao leitor que dentre as coisas que direi, não sei mais diferenciar com precisão o que é de Jung Mo Sung e o que é realmente meu. Peço desculpas por isso, mas não creio que tal problema invalide aquilo que será dito.
Pra começar, como alguém que sempre escreveu preferencialmente para um público cristão, quero que o leitor saiba ou se lembre de que a pirataria entrou nos últimos anos para a lista dos interditos da igreja. Quero dizer que, a grande onda de pirataria que presenciamos chamou a atenção das igrejas cristãs, que trataram de colocar tal “pecado” em sua já imensa lista de proibições. Assim, a pirataria que é oficialmente um crime, tornou-se também um pecado, já que a igreja institucionalizada diz seguir incondicionalmente a lei.
Por pirataria nos referimos ao ato de copiar, reproduzir ou comercializar sem a autorização dos detentores dos direitos autorais, produtos como livros, cd’s, dvd’s, softwares etc. A lei assegura ao autor de tais obras, pelo menos por um tempo, o direito de comercializar seus produtos e dele obter lucro, mas em nosso país sub-desenvolvido esse direito vem sendo infringido, e é muito natural as pessoas adquirirem cópias desautorizada de filmes, programas de computador, jogos de videogame ou cópias de livros. Aí começa a batalha.
De um lado, os autores e comerciantes dos produtos legalizados dizem que estão sendo roubados. Isso é verdade se levarmos em conta que a lei diz que eles devem ganhar por cada cópia de livro de cd vendida, por cada vez que um filme é exibido num cinema ou uma música tocada no rádio. Mas seja honesto, você não possui nem mesmo uma “xérox” de uma parte de um livro em casa? Difícil alguém escapar dessa culpa, e alguns justificam-se dizendo que um filme não precisa custar tão caro. Concordo que os preços dos produtos que citei acima são bem elevados, muito acima do custo de produção dos mesmos, demonstrando que o interesse financeiro supera muito o desejo de se compartilhar informação e cultura; todavia, quando se trata de produtos supérfluos como uma música ou um filme, nada justifica sua pirataria. Se estes produtos custam muito, eles devem ser encarados como luxos que nem todos podem ter. Nós podemos, sem muito esforço, abrir mão de comprar esses produtos por preços abusivos, e inclusive, quando se trata de música, as melhores são antigas e de domínio público, ou podem ser adquiridas por preços bem menores do que os lançamentos.

Há quem diga que não copia para vender, e acredita que apenas a comercialização de produtos piratas é crime. No entanto, estão enganados. Na verdade, quando compramos um cd, pagamos pelo direito de ouvir suas músicas quantas vezes quisermos e onde quisermos, e não pela mídia em si; podemos copiá-lo para nossos celulares, gravá-los no computador, levar cópias para o carro etc. Entretanto, se você dá para um amigo que não pagou nada uma cópia do mesmo cd: pronto, é um criminoso! Já disse, não há desculpas para que alguém que não pode adquirir filmes, músicas ou jogos originais, volte-se para produtos ilegais. Essa é, porém, apenas uma das categorias de pirataria que quero discutir, a de produtos supérfluos. A segunda categoria diz respeito aos produtos de grifes ou marcas famosas, que envolvem algumas peculiaridades que merecem destaque particular.

A princípio, podemos dizer dessa o mesmo que foi dito a respeito da primeira categoria. Não precisamos de tênis Nike, de bolsas Gucci, nem de carros Ferrari. Essas coisas podem ser substituídas tranquilamente por outras mais simples, feitas para consumidores de baixa renda. No entanto, gostaria de agora ampliar nossa discussão, demonstrando que as empresas, quando se dizem prejudicadas pela pirataria, não são tão inocentes assim.
Dizem que “alma do negócio” é a propaganda, e é verdade. Por meio de muita propaganda os grandes empresários influenciam a sociedade, atacam seus instintos possessivos levando-os a crer que realmente precisam dos produtos que eles fabricam e exibem. O problema é que com a globalização, uma boa propaganda feita para vender um tênis para a classe média dos Estados Unidos, também cria o desejo de consumo em moradores da periferia do mundo. Os jovens sentem vergonha de ir à escola com suas velhas roupas, e a conseqüência natural das boas publicidades no mundo globalizado é a pirataria. Alguns se esforçam para comprar os produtos importados que lhes conferem status na sociedade, deixam de investir numa educação de qualidade, num seguro de vida ou num plano de saúde, coisas bem mais importantes para a subsistência, e pagam juros sobre juros para poder exibir uma etiqueta aos olhos também desejosos dos seus conhecidos. Outros, menos favorecidos, precisam apelar para que não sintam-se rebaixados, e apelam para os produtos piratas que embora não tenham a mesma qualidade, enganam bem.
A conclusão a que chegamos é que o ávido crescimento da pirataria é resultado das maciças campanhas de marketing elaboradas pelas grandes empresas, que ao convencer o mundo de que seus produtos são importantes, acabam convencendo também um público que não era seu alvo principal, gente que não pode pagar pelo que oferecem, mas que também estão hipnotizados pelos encantos do consumismo. Por fim, testemunha-se o crescimento epidêmico da pirataria e tais empresários ainda acusam os pobres de roubo. Claro, a lei está do lados deles, e queriam ganhar mais, queriam que deixássemos de comer para pagar-lhes absurdos R$ 500,00 num par de calçados. Olhando as coisas por esse ângulo, vemos que os consumidores desses produtos piratas não são tão criminosos quanto dizem, e que os empresários, não são tão vítimas quanto querem nos fazer acreditar. A pirataria é, na verdade, conseqüências natural da política que adotaram, um fenômeno sociológico que nas circunstâncias em que vivemos é difícil de evitar.
Esse debate ainda torna-se mais áspero quando nos voltamos para uma terceira categoria de produtos pirateados, os softwares. Sabemos que os países de primeiro mundo são os grandes produtores desses produtos, e empresas como a Microsoft controlam o mercado internacional garantindo um grande volume de vendas de seus produtos em todo o mundo. Como sempre, esses produtos não são vendidos a preços acessíveis para a maior parte da população brasileira, e por isso os mais talentosos profissionais dos ramos tecnológicos atuam produzindo meios de piratear esses produtos de ponta.

Nesse caso a questão é bastante séria. Imaginemos como seria se realmente um país como o Brasil não tivesse recorrido à pirataria. Qual seria nosso conhecimento de informática hoje? Quantos teriam acesso à internet? Quantos de nós poderiam usufruir dos seus benefícios educacionais? E como teria se dado o crescimento tecnológico da nação nas últimas décadas? Com isso, podemos ver que, não fosse pela pirataria, nosso país estaria ainda mais defasado culturalmente em relação às nações de primeiro mundo. Na verdade, o domínio sobre essa tecnologia, além de enriquecer seus produtores, resulta numa espécie de controle científico sobre os demais, e caso eventualmente apareça um brasileiro dedicado e talentoso, que pôde pagar por um bom curso e tornou-se um excelente profissional capaz de produzir tecnologia nacional de nível similar à estrangeira, não pense que ele ajudará sua nação crescer e competir com os países de primeiro mundo; antes, ele receberá uma proposta irrecusável para trabalhar nos Estados Unidos, no Japão ou na Europa, e acabará oferecendo seu talento àqueles que determinam, pelo controle que também possuem das leis de mercado, até onde nós podemos evoluir.

Diante deste cenário, volto a dizer que o discurso anti-pirataria que normalmente ouvimos nos meios de comunicação é um discurso produzido não pelas vítimas, mas pelos opressores. O mundo diz que eles podem publicar um livro ao custo de R$ 5,00 e vender por R 45,00, limitando o progresso cultural nas periferias, mas eu, se não puder pagar pelo livro, mereço permanecer ignorante. Apesar de alguns exageros meus, para muita gente, a pirataria de softwares foi um caminho essencial para o seu desenvolvimento cultural.

Agora eu peço que o leitor mesmo julgue qual deve ser a posição da igreja cristã diante dessa realidade. Deve a igreja manter-se inculpável diante da lei, repetindo a propaganda capitalista, ou deve, como fez Jesus, seu suposto fundador, confrontar o Estado quando as regras estabelecidas servem para favorecer impérios e oprimir as pessoas simples? Será que as questões que levantamos aqui foram consideradas quando as igrejas criaram interditos que proíbem qualquer tipo de pirataria? Acho que não. É por conseqüência de atitudes irrefletidas como essas que editoras estrangeiras publicam Bíblias, cujo conteúdo é de domínio público, que foram traduzidas para o português há séculos usando linguagens que nem entendemos mais, e as vendem para nós por mais de R$ 100,00 reais.

Bem, deixe-me dizer antes de terminar, para que eu não seja preso pelo que escrevi, que não estou apoiando ou incentivando essa prática “criminosa” que é a pirataria. Se você estivesse aqui diante de mim, para olhar diretamente no meu olho de vidro e apertar minha mão de gancho, saberia que eu nunca apoiaria tal coisa.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O MOVIMENTO DE JESUS: UM PROJETO DE LIBERTAÇÃO E JUSTIÇA SOCIAL

Introdução:

O Movimento de Jesus não foi o início de uma nova religião ou uma iniciativa para a implantação do cristianismo no mundo, mas um movimento que nasceu dentro do judaísmo do primeiro século da era cristã com motivações não apenas religiosas, mas também sociais e políticas. Ele era constituído principalmente por pessoas marginalizadas que simpatizavam com o líder carismático Jesus de Nazaré e seu discurso, e inicialmente esteve restrito à região da Galiléia, nos arredores da margem norte do Lago de Genesaré, onde aparentemente residia a maioria dos primeiros seguidores de Jesus. Tinha como objetivos 1) motivar uma transformação interna e pacífica na sociedade através da busca pelo ideal que era exprimido através da metáfora do reino de Deus, identificada como centro do discurso de Jesus; e também 2) a transformação dos indivíduos envolvidos no movimento, que eram chamados ao arrependimento e seguimento, ou numa linguagem posteriormente adotada pelo cristianismo, à conversão. Foi apenas depois da morte de Jesus e do surgimento dos polêmicos relatos de sua ressurreição, que se dá início a um novo movimento judaico que logo tornou-se essencialmente religioso e dedicou-se a anunciar Jesus como o Messias, o libertador enviado por Deus que era esperado pelos judeus. Essa nova seita posteriormente seria forçada pelas suas desavenças teológicas a separar-se do judaísmo, dando origem, contra a vontade de muitos, a uma nova religião chamada cristianismo.

Nesse breve artigo, analisaremos algumas das mais marcantes características constatáveis no Movimento de Jesus que têm sido esquecidas mesmo pelos mais assíduos leitores da Bíblia. Nos basearemos durante nosso estudo, naquilo que nos dizem os textos dos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) e os estudiosos do Novo Testamento em geral. Procuraremos demonstrar com poucas páginas, que o Movimento de Jesus foi um ajuntamento de pessoas da classe oprimida buscando libertar sua sociedade através de discursos e ações indiretas de protesto. Um movimento que nasce, como tantos outros movimentos populares de protesto, como evidência do fracasso das instituições que deveriam civilizar o homem. O Movimento de Jesus, se não foi a mais bem sucedida de todas as tentativas já feitas nessa luta infindável pela liberdade, foi provavelmente a mais famosa.


1 – O Movimento de Jesus como inimigo das instituições coercitivas:

Para nortear nossa análise do Movimento de Jesus, seguiremos algumas reflexões de Sigmund Freud, registradas principalmente em “O Futuro de uma Ilusão”, de 1927. Freud demonstra por meio de argumentos convincentes, que a sociedade cria instituições com fim de regular as relações humanas controlando os seus instintos. Freud afirma que por natureza, os homens desejam possuir os bens alheios, reagir com violência às ameaças externas, dominar uns aos outros; ou seja, seus instintos são destrutivos e precisam ser controlados. É exatamente nossa capacidade de controlar os instintos que nos diferencia dos animais e nos faz civilizados. Os traços mais marcantes dessa civilização são vistos em instituições nitidamente coercitivas como o Estado, a religião e a família, todos opressores das vontades humanas instintuais, mas necessários para que sobrevivamos sem o medo de que a qualquer momento alguém nos mate para roubar nossos bens e esposa. O problema ganha novos contornos quando dentro de tais instituições, outros homens se deixam dominar pelos seus instintos egoístas e usam seu poder para oprimir. Nesses casos nada incomuns, em vez de proteger a humanidade das ações irracionais e destrutivas, as instituições tornam-se elas mesmas os inimigos da civilização, fazendo dos mais fracos seus objetos de exploração.

Sob este ângulo, o Movimento de Jesus pode ser descrito como uma iniciativa nascida do desejo de mudança por parte de um povo oprimido, cansado da exploração excessiva imposta pelas instituições coercitivas do seu tempo. Os três principais instrumentos coercitivos (Estado, religião e família) são todos desafiados na pregação de Jesus, que foi desde sempre, contrária à classe regente que embora comportasse algo em torno de 1 a 2% da população somente, oprimia todos os demais através de confiscos, desapropriações, impostos ou exigências tributárias, e a coerção para a prestação de serviços. Nas seções seguintes nos dedicaremos à tarefa de exemplificar brevemente como Jesus e sua mensagem atacaram as instituições coercitivas do seu tempo.

1.1– O Movimento de Jesus contra o Império Romano:

A primeira dessas instituições coercitivas, o Estado, personificado nos dias de Jesus pelo Império Romano, é indiretamente compreendido nos evangelhos sinóticos como uma instituição destinada à ruína. Isso está implícito no anúncio da irrupção do reino de Deus, que é claramente a figura empregada para descrever um tempo futuro em que os poderes seriam tomados por Deus. A esperança de Jesus era a implantação de uma teocracia, e o reino é, neste sentido, uma afronta ao poder Imperial. Era, em outras palavras, um convite para que os ouvintes agradassem mais a Deus que ao imperador, já que em breve aquele, e não este, reinaria. Não por coincidência, o anúncio do reino de Deus vinha acompanhado da tentativa de se inaugurar uma espécie de sociedade alternativa, regida por leis próprias condizentes com as leis de Deus. Evidentemente não foi por acaso que tais expectativas acabaram por levar o líder dessa sociedade à morte.

Todavia, a mensagem de Jesus só veio mesmo a ser vista como um problema real pelo império quando Jesus é identificado como Messias, título que é uma mescla dos papéis de rei e de portador transcendente de salvação. Difícil dizer se o próprio Jesus se designava Messias ou se este título é uma atribuição posterior à sua morte; mais difícil ainda é saber se Jesus reivindicava o poder real quando se dizia Messias, pois como crítico do império, é provável que a posição de rei não lhe fosse desejável. Mas é fácil saber que aos olhos de boa parte dos seus ouvintes e discípulos, Jesus comparava-se a um rei, o que vê-se através de vários exemplos dos evangelhos sinóticos. Em Mc 2.25s, quando Jesus responde aos opositores que o julgam por não guardar a lei do sábado, se compara ao rei Davi, que como rei, viola as leis do Templo sem que por isso seja considerado um transgressor rejeitado pela tradição. Em Mt 21.1-5, quando ele pede que seus discípulos lhes tragam um jumentinho para que sobre ele entre em Jerusalém, Jesus cita um texto do profeta Isaías dizendo: “Eis aí te vem o teu Rei...” (v. 5). A própria entrada triunfal, se não é uma forma de reivindicar honrarias reais, é ao menos uma imitação sarcástica que zombava do imperador e do rei cliente Herodes Antipas, que costumavam preparar chegadas pomposas nas cidades que visitavam. Esses exemplos já nos mostram como é provável que desde cedo Jesus tenha sido interpretado como um pretendente real.

Colocado no papel de um pretendente a soberano, Jesus torna-se um criminoso perigoso, um rebelde. Foi assim que Jesus foi acusado diante de Pilatos (Mc 15.2). Para o governador, não tinha qualquer importância a ameaça de Jesus ao templo, suas atitudes proféticas ou mesmo se alguns diziam que ele era o Filho de Deus, somente como pretendente a Messias e rei ele podia ser incriminado. Por isso, na cruz em que foi pregado estava escrita a razão pela qual Jesus foi assassinado; ele era o “Rei dos Judeus” (Mt 27.37).

Em resumo, o poder romano foi considerado abusivo por Jesus, e sua reação a ele foi a criação de um movimento que acreditava que tempos mais justos estavam por vir, e tinha como meta a proclamação desse desejado reino de Deus. Pena que tais ações logo foram identificadas como crimes contra o Império, e esse admirável revolucionário, assassinado ainda no início do seu movimento.

1.2 – O Movimento de Jesus contra o Templo Herodiano:

A história do Templo de Jerusalém é longa e complexa demais para que a apresentemos aqui, todavia, apresentar exemplos em que Jesus revela-se como um opositor à religião oficial é tarefa a que podemos nos deter. O ataque de Jesus ao Templo é mais direto do que seu ataque ao império; ele é o alvo da sua ida até Jerusalém, pouco antes de ser morto.

O edifício grandioso do Templo que teoricamente deveria servir aos interesses religiosos do povo tornara-se, nos dias de Jesus, uma grande organização burocrática que dependia de grande arrecadação para que se mantivesse. Sacrifícios, dízimos, ofertas e impostos eram cobrados sob o pretexto de assegurar a bênção de Deus sobre a nação, mas acabavam sendo usados mesmo para manter a luxuosa forma de vida da elite sacerdotal. Além do mais, essa elite que já impunha um pesado encargo econômico ao povo para manter o status adquirido, cuidavam também dos interesses de Roma dentro de Jerusalém, tornando-se odiosos aos olhos de muitos. Jesus estava entre esses nativos que aborreciam a dominação romana e voltava-se agora contra a aristocracia sacerdotal.

Temos nos evangelhos algumas passagens que fazem referência ao modo como Jesus combateu a opressão imposta pelo Templo de Jerusalém e seus administradores. Um primeiro exemplo temos em Mt 17.24-27, que combate a obrigatoriedade de se pagar o imposto do Templo. No texto um cobrador do imposto do Templo vem a Pedro, que procura Jesus. Então, Jesus argumenta sobre o direito de não pagar impostos, mesmo que na passagem, provavelmente alterada pelo trabalho redacional do judeu-cristão Mateus, o imposto acaba sendo pago a fim de evitar escândalos. Em Mc 11.15-19 encontramos um segundo bom exemplo. Nele lemos uma perícope que normalmente é intitulada como “A purificação do Templo”. Para o conceituado estudioso do Novo Testamento John Dominic Crossan, esse título é um equívoco de interpretação, visto que não havia nada errado na prática comercial realizada no Templo que o fizesse impuro; o ato de Jesus consistia então, num ato de destruição simbólica, num protesto que anunciava a necessidade de destruição de algo que não atende às expectativas para as quais existe.

Acima dissemos que diante de Pilatos Jesus foi acusado como um pretendente real; diante do Sinédrio, porém, Jesus foi acusado por suas ameaças ao Templo. Até mesmo as comunidades judaico-cristãs das quais nasceram os livros do Novo Testamento constrangia-se com a ameaça que o Jesus histórico fizera ao Templo, no entanto, há evidências de que tais ameaças tenham sido reais.

1.3 – O Movimento de Jesus contra a Família:

O cristianismo como religião preservou em sua história a luta pela preservação de um modelo tradicional de família. Porém, de maneira surpreendente para grande parte dos cristãos, os documentos conhecidos que nos informam sobre o Movimento de Jesus nos revelam que Jesus trabalhou na direção oposta; em vez de ensinar a preservação da família, Jesus lutou contra ela, como se ela fosse um instrumento coercitivo tão opressor quanto o Estado e a religião institucionalizada. Como se explica tal contradição?

Jung Mo Sung, em seu livro “Cristianismo de Libertação: espiritualidade e luta social”, fala sobre o papel da família dentro da luta pela humanização das pessoas. Ele declara que a família, quando presa a um modelo absolutista e conservador, pode tornar-se um instrumento de coerção por não atender às dinâmicas formas de relacionamento humano: Suas palavras são: “A absolutização de determinado modelo de família, assim como a de qualquer modelo de igreja ou de sociedade, sempre acaba produzindo formas de opressão e dominação porque a riqueza humana e das relações sociais é sempre maior e mais complexa do que qualquer modelo.”
Aceitamos tal explicação como a hipótese mais provável para se entender a motivação anti-família típica do Movimento de Jesus. Supomos que para Jesus, o modelo de família que sua sociedade impunha àqueles que queriam manter seu status era inadequado, o que pode se tornar um sinônimo de opressão dependendo da intensidade com que tal imposição se dá. Diante dos ideais de Jesus à frente do seu movimento, o casamento, a criação de filhos e as responsabilidades familiares que a primogenitura lhes apresentava eram limitações que deveriam ser evitadas. Em pouco tempo, formas diversas de combate ao modelo familiar tradicional foram desenvolvidos para que as normas que regulamentavam o comportamento das pessoas dentro do movimento pudessem atender tanto ás necessidades pessoais, quanto aquelas que estavam inseparavelmente ligadas à mensagem que lhes unia.

Crossan diz, ao comentar Mateus 10.34-36, texto em que Jesus diz que veio para trazer divisão às famílias e não paz, que tais convulsões causadas por Jesus dentro da família têm origem no seu projeto de quebrar os padrões hierárquicos tradicionais em sua sociedade. Neste sentido, o ataque de Jesus à família assemelha-se ao seu ataque às demais instituições coercitivas do seu tempo, mas aqui, o poder dos seus opositores não pôde tirar-lhe a vida. Parece-nos também provável que uma das principais razões para a luta de Jesus contra o padrão familiar vigente estava na estratégia que adotara para a propagação de sua mensagem pelas aldeias da Galiléia. Desde o princípio da sua atividade, Jesus deixou o convívio familiar para tornar-se um pregador itinerante, e tudo indica que seus principais discípulos foram aqueles que o ouviram ensinar na Galiléia e aceitaram segui-lo segundo este mesmo modo de vida migrante (Mc 1.16ss). Trabalho, casa e família tinham que ficar para trás ou ao menos em segundo plano se alguém pretendesse viver como Jesus e ser um de seus discípulos.

Alguns conhecidos textos dos evangelhos tornam-se significativos mediante essa compreensão. Este é o caso de Mateus 8.19-22, em que o autor do evangelho une um texto em que Jesus fala da dificuldade da vida itinerante a outro que trata do rigor de Jesus quanto à necessidade de se deixar para trás a família. Para Jesus, era necessário amar a Deus acima de todas as coisas (Mc 12.33), seus seguidores tinham que amá-lo e à sua missão mais do que à família (Mc 10.37).

Mesmo naqueles dias, é provável que tal rigor no convite aos discípulos do círculo mais próximo tenha causado polêmicas e até encontrado sérias oposições entre as famílias divididas pelo movimento. Sabemos que nem todos aqueles que simpatizaram com a mensagem de Jesus estiveram também dispostos a deixar tudo para trás, e a multiplicidade de formas de cristianismo incipientes que são constatáveis em diferentes regiões da Palestina e fora dela no primeiro século, talvez tenha parte de sua origem nesses simpatizantes sedentários que adaptaram a expectativa do reino de Deus às suas próprias formas de vida, nas aldeias em que trabalhavam seus campos e criavam seus filhos.

Sobre os opositores do chamamento radical que Jesus fazia para o ingresso num ministério itinerante, Gerd Theissen escreveu: “Os adeptos do movimento de Jesus se defenderam da acusação de uma ética alheia à família. Em parte se justificaram dizendo que remodelaram o conceito de família: verdadeiros parentes não seriam os membros natos da família, mas aqueles que ouvem e cumprem a palavra de Deus”.

O movimento então, para amenizar os conflitos que sua política anti-família podia trazer, instrui seus membros a aceitarem o convívio no grupo como uma substituição à família co-sanguínea. A comunhão de bens e a solidariedade entre os membros eram características indispensáveis mediante essa proposta; convenciam os membros de que sua opção pelo grupo em vez da família era boa, conforme se lê em Marcos 10.29-30. Eles encontraram na mutualidade um meio de fugir às opressões que o estado e a religião lhes impunha, e que a família tradicional ensinava e apoiava. No grupo, eles podiam viver sob novas leis, normas controladoras dos instintos criadas por eles mesmos, que consideravam boas e fiéis à vontade de Deus; além disso, podiam permanecer mais unidos no projeto de anunciar a intervenção apocalíptica de Deus sobre o mundo, a fim de prepará-lo para a chegada do novo tempo.

A rebelião contra a família é sem dúvida a mais polêmica das três principais formas de protesto político-social constatáveis no Movimento de Jesus, e também a mais difícil de entender, especialmente se consideramos que Jesus e seus seguidores eram parte de uma sociedade coletivista, onde não se pensava em sucesso pessoal independente do grupo de origem. A integridade da família, a segurança e a honra do grupo como um todo eram, em geral, prioridades. O status era medido não pelas realizações profissionais ou pelas conquistas de uma pessoa, mas pela sua aceitação dentro do seu grupo e pela sua contribuição ao mesmo. Não se deve estranhar que em sociedade coletivistas como essas os indivíduos não hesitem diante da necessidade dar a vida pelo grupo. Natural sob esta ótica é a rivalidade de Jesus e seus seguidores da Galiléia para com os romanos, ou mesmo para com os membros judeus da aristocracia sacerdotal. Estes eram entendidos como grupos distintos; isso era suficiente para que fossem rivais. Entretanto, a insubmissão de Jesus aos padrões familiares é um problema que vai além do que nós, pela mera leitura dos textos dos evangelhos, podemos assimilar.

Muitos são ainda os exemplos e os detalhes que se referem à maneira radical de vida adotada por Jesus e seus principais seguidores que mereceriam nossas considerações. Por hora, o que foi dito é suficiente para que entendamos que a família era para Jesus uma instituição opressora, e que foi a primeira a ser negada quando Jesus dá início ao seu movimento de protesto contra os abusos sofridos pelo seu povo, os camponeses da Galiléia.

Conclusões

Protestar contra instituições e sistemas-sociais opressores sempre foi uma característica essencial do cristianismo, ou pelo menos deveria ser, visto que ele nasceu de um movimento cujos principais objetivos sempre foram mais sociais e políticos que religiosos. Mas sem Jesus, o movimento foi gradualmente desviando-se do seu objetivo inicial, e após a atuação de homens influentes como Paulo, que adaptaram o cristianismo para que fosse recebido por culturas não judaicas, a nova religião trocou suas preocupações com o mundo pelas preocupações com o céu, como relata Rubem Alves em Religião e Repressão, uma obra em que analisa o protestantismo brasileiro: “O protestantismo [...] nunca articulou, espontaneamente, uma ética social. O seu problema é outro. Preocupa-se com a salvação da alma. Por isso a questão da transformação do mundo sempre lhe pareceu um desvio perigoso. A sua ética é individual e não social”. Ou como escreveu Jürgen Moltmann em sua célebre obra Teologia da Esperança: “... o cristianismo, em sua forma social, aceitou a herança da antiga religião de Estado e se instalou como ‘coroa da sociedade’, como ‘meio santificador’, perdendo assim sua força inquietadora e crítica, proveniente da esperança escatológica”.

No fim das contas, o cristianismo distanciou-se tanto das suas origens como movimento de protesto contra instituições opressivas que institucionalizou-se, tomou para si os deveres de Estado, e transformou-se, por incrível que pareça, numa das instituições mais opressoras (se não a mais opressora) que a história humana já conheceu. Ao que tudo indica, Jesus de Nazaré, se revivesse séculos depois, lutaria acirradamente contra esta religião criada em seu nome, e acabaria, muito provavelmente, sendo novamente assassinado por ela.

Talvez, se o cristianismo de hoje retrocedesse com mais freqüência ao Jesus histórico, se voltasse até suas origens como movimento de renovação social, pudesse concretizar o sonho que norteou o trabalho de revolucionários, religiosos e cientistas, como Freud ou Jesus; o sonho por construir um mundo melhor, mais humano ou civilizado.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

SALMO 126 - CÂNTICO DE TRANSPARÊNCIA E FÉ

Não sei dizer desde quando identifico-me de maneira especial com o Salmo 126, mas já faz anos que tenho-o como meu salmo preferido, e releio-o eventualmente sempre cheio de emoção pelo que seus dizeres me transmitem. Só agora resolvi escrever algumas das minhas meditações sobre este salmo para que outros também possam com ele se deleitar, então fiz uma tradução própria do salmo a partir da Bíblia Hebraica, e é com base nela que vou expor aquilo que tanto me fascina neste salmo, procurando fugir tanto quanto possível do linguajar técnico a que nos submetemos nas academias, que em vez de tornar o conteúdo claro, obscurece-o para aqueles que não convivem entre os doutores.

Comecemos então pelo texto. Antes de lê-lo, saiba o leitor que eu procurei mantê-lo bem literal, ou seja, tão fiel ao original quanto possível. Talvez tal fidelidade torne o texto um pouco mais difícil, e com certeza o fará parcialmente diferente do que habitualmente encontramos nas Bíblias em língua portuguesa, todavia, essa opção mostrar-se-á de grande valor para nossa interpretação.

SALMO 126

1. Canto de subida (de peregrinação)

Quando Javé fez Sião voltar do cativeiro foi como se nós (estivéssemos) sonhando.

2. Então, nossa boca foi cheia de riso, e nossa língua de júbilo.
Então diziam nas nações: Grandes coisas Javé (está) para fazer com estes.

3. Grandes coisas Javé (estava) para fazer conosco; ficamos alegres.

4. Faz voltar nossa sorte Javé, como as correntes do Negueb.

5. Os que vão semeando com lágrimas, com júbilo colherão.

6. (Quem) vai andando e chorando levando o saco (de sementes), certamente virá com gritos de júbilo trazendo seus feixes.


1 – Parecia uma Grande Bênção
A primeira parte do Salmo 126 está, na minha opinião, entre os versículos 1 e 3. Assim, nos dedicaremos primeiro a esta seção individualmente.
O salmo começa com um título: “Canto de subida”, que é significativo para que entendamos o propósito do autor. O mesmo título pode ser encontrado em todos os salmos de 120 a 134, que formam um conjunto de textos que possuem algumas características peculiares. Cantos de subida ou de peregrinação eram nada mais que canções compostas especialmente para serem entoadas durante a peregrinação dos judeus até Jerusalém, onde celebravam suas festas religiosas. Como era de se esperar, estes salmos falam, dentre outras coisas, do Templo em si e da alegria de celebrar na casa de Deus (Sl 122.1; 132.7-9), no monte santo do Senhor (Sl 121.1; 125,1-2); falam de como Deus respondia às orações e de como é de Jerusalém que eles acreditavam que ele se manifestava a seu povo (Sl 128.5; 132,13-14; 134). Vindos de toda parte, os judeus faziam soar em todo o país nos dias de festas os seus cânticos de louvor, essas melodias hoje desconhecidas. Elas preparavam os corações para os esperados momentos de alegria, comunhão e culto. A peregrinação de famílias inteiras até Jerusalém por causa da sua fé é, portanto, o que devemos ter em mente enquanto lemos o salmo.

Após o título, o primeiro versículo completa a tarefa de nos informar sobre o momento histórico em que este salmo foi escrito. Ele diz que os cativos já haviam voltado para Sião. Se temos um salmo de peregrinação, sabemos que existia um Templo religioso em atividade, e se os cativos já voltaram, estamos no período pós-exílico. Este Templo tão mencionado nos salmos de subida era o Templo edificado pelo povo conforme nos informa o livro de Neemias. Ele não era tão belo e portentoso quanto o Templo de Salomão, destruído quando os Babilônios conduziram Judá ao exílio, mas era eficiente em seus serviços. Isso, porque na maior parte do tempo a religião oficial de Israel era controlada pelo Estado, pelo rei, e servia-lhe mais como instrumento de dominação e extorsão do que como instrumento de adoração e intercessão em favor do povo. Agora, após o exílio, não havia um poder estatal estruturado capaz de controlar a religião oficial desta forma, o que dava ao povo total controle sobre as atividades desse novo e humilde Templo.

Na Bíblia, a diferença entre o Templo pré-exílico e o Templo pós-exílico é facilmente identificável nos livros dos profetas. Os primeiros grandes profetas como Elias e Isaías, viveram antes do exílio e acirradamente acusavam os reis e condenavam a religião nacional, anunciando que Deus acabaria por destruir essas monarquias e seus edifícios religiosos que patrocinavam a opressão do povo. Todavia, profetas pós-exílicos como Malaquias possuíam opiniões absolutamente diferentes; eles tinham diante de si um novo Templo, construído e administrado pelo próprio povo. Por isso o apoiavam e incentivavam a fidelidade do povo ao mesmo.

Pois bem, o exílio na Babilônia ocorreu entre 597/587 e 539 a.C., e a inauguração do novo Templo se deu 515 a.C. Nossos salmos de subida são então, provavelmente produções do final do sexto e do quinto séculos a.C. No primeiro versículo de Salmo 126 o autor se refere à volta do exílio em 539 a.C., e fala como se fora testemunha ocular dos acontecimentos, como se estivesse entre os cativos que viajaram de volta à já esquecida terra natal. Ele diz que para aqueles que voltavam, isso era como um sonho. Sim, eles não podiam acreditar que de uma hora para outra, o império babilônico fora derrotado pelos persas, que decidiram repatriar aquele povo. Eles não podiam dar outro motivo para isso, era um milagre, obra de Javé.

No versículo 2 o autor dá ênfase ao sentimento de euforia que sentiram através de uma tradicional estrutura de paralelismo. Ele repete a mesma frase com sinônimos, para expressar enfaticamente e com o estilo poético mais elegante da sua língua, como ele e seus patrícios estavam felizes quando ganharam a liberdade

Na segunda parte do versículo 2, o leitor que conhece bem o Salmo 126 deve ter notado que minha tradução difere das traduções comumente encontradas nas Bíblias. Eu escrevi: “Grandes coisas Javé (está) para fazer com estes”. Primeiro, o verbo entre parênteses está subentendido, ou seja, não existe no texto hebraico. Mas isso não é raridade, ocorre com muita freqüência e cabe ao tradutor e interprete escolher o tempo verbal de acordo com o restante do texto. Deixei o verbo no presente, embora isso faça a minha tradução diferente das demais, porque logo a seguir no texto hebraico temos um verbo no infinitivo com uma preposição (la‘asot), cuja tradução mais óbvia é “para fazer”. Portanto, a opção dos tradutores normalmente é alterar o texto hebraico para chegar à “fez”, eu todavia, preferi manter o infinitivo e tive de acrescentar o verbo estar para dar sentido ao texto. Mas este não é o único motivo que me levou a traduzir o texto assim, no entanto, deixemos este outro motivo para outro momento.

No versículo 3, o mesmo problema com a tradução se repete. Aqui, porém, o verbo estar que está subentendido foi deixado no pretérito: “Grandes coisas Javé (estava) para fazer conosco”. O verbo fazer outra vez foi mantido no infinitivo seguindo aos mesmos critérios adotados no versículo anterior, diferentemente do que ocorre na versão “Almeida Revista e Atualizada” (RA), que traduz de maneiras diversas o verbo que é idêntico nos versículos 2 e 3 no texto hebraico.

Deixando agora de lado esse problema de tradução e voltando a falar do conteúdo, temos que o autor do salmo, nesta primeira parte, traz à lembrança dos adoradores que peregrinavam para Jerusalém a marcante volta do exílio, e descreve com grande beleza o sentimento de alegria que os libertos experimentaram naqueles dias. Entretanto, segundo a minha tradução, o autor descreve a alegria de um povo que estava a caminho, ansiosos por vislumbrar (pela primeira vez para a grande maioria) a terra que seus pais foram forçados a abandonar. Segundo o autor, tanto os ex-exilados que caminhavam como também os estrangeiros que viam tal peregrinação ficavam admirados, e tinham a expectativa de que Deus faria coisas grandes por aquele povo. Aquela libertação era, aos seus olhos, apenas o começo de um grande milagre. Por isso, na minha opinião, a melhor maneira de traduzir o texto é dizendo que Javé estava para fazer grandes coisas por eles. O salmista não queria afirmar que Javé fez tais coisas, mas expressar a esperança que eles tinham naquele momento com base na libertação; ao menos é assim que eu entendo este texto.

2 – A Oração de um Decepcionado

O salmo muda radicalmente no versículo 4. O autor parece fazer uma breve oração, um pedido que pode, à primeira vista, parecer completamente contraditório com o que fora dito nos versículos anteriores. Ele pede para que Deus os restaure, para que faça mudar a sorte deles. Isso quer dizer, que após a libertação e a expectativa de que agora Deus faria grandes coisas em favor deles, houve uma decepção, o que motiva a oração do salmista peregrino.

Essa interpretação é facilmente confirmada se voltarmos por alguns momentos nossos olhares para a história de Israel. Jerusalém e o Templo de Salomão foram deixados em ruínas quando os babilônios os dominaram e levaram toda a elite do povo cativa. A visão daqueles felizes libertos quando chegavam em Jerusalém deve ter sido desanimadora. Não havia ali nada que lembrasse a glória da cidade que seus pais lhes contavam. Na verdade, a Babilônia passou a ser um habitat muito mais saudável para eles, que ao longo dos anos, já haviam ali se estabelecido. Sabe-se que foi grande o número de judeus que optou por manter suas vidas na antiga cidade de exílio em lugar de se mudar e trabalhar na reconstrução da terra dos seus antepassados.

Agora é possível compreender porque deixamos nossa tradução tão diferente das demais. O salmista, se foi realmente uma testemunha ocular dos fatos que descreve, se esteve realmente entre os que voltaram do exílio, passou por um período de grande euforia até que finalmente chegou à desolada cidade de Jerusalém. Ali ele via que na realidade, o sonho não era tão bonito assim, e deve ter sido difícil encontrar ânimo para começar a lenta e difícil restauração. Esse homem chocado com a realidade dificilmente faria uma afirmação como aquela do versículo 2, onde até nas nações dizia-se que Deus fizera grandes coisas por eles. Não, Deus estava para fazer, mas ainda não fizera. A libertação era um milagre para eles, mas era apenas o começo de algo muito bom que provavelmente ainda estava por vir.

Justifica-se assim a oração feita no versículo 4. Decepcionado com a realidade, o salmista que antes cantava jubiloso agora clama por restauração. Só mesmo Deus para transformar aquele grande monte de entulho em algo digno novamente. Ele emprega as correntes do Negueb poeticamente, deseja que assim como os leitos d’agua normalmente secos tornam a se encher após as chuvas de inverno, que a sorte volte aos filhos de Israel trazendo vida.

Se estamos enganados quando dizemos que o autor não afirma que Deus fez coisas grandes por eles, mas que estava para fazer, como se explica a oração do verso 4? Por que se pede restauração se o Deus já fizera coisas grandiosas? Alguns intérpretes, baseando-se nas traduções mais populares em língua portuguesa, pensam que a sorte a ser restaurada como as correntes do Negueb se refere a um número maior de exilados que o autor desejava que voltassem para a terra natal, assim como o primeiro grupo. Contudo, mesmo que este fosse um desejo do autor após a reconstrução do Templo, o anseio por ver sua cidade reedificada, sua casa de pé, seu campo cultivável, era sem dúvida a sua prioridade. Este era, acredito, o motivo da oração das primeiras gerações de judeus que voltaram do exílio. Mesmo após a reinauguração do Templo, não podemos duvidar de que o país ainda devia apresentar um cenário de desolação, que faz jus à oração que lemos. Levaria ainda um século para que a Palestina e seus habitantes desfrutassem de certa ordem, reestruturada politicamente sob a hegemonia dos administradores do Templo.

3 – Uma Promessa que Alimenta a fé

A última parte do Salmo 126 também está estruturada em forma de paralelismo. Os dois versículos praticamente dizem uma só coisa, que quem sai ao campo triste para semear, não deixa de colher com alegria. Ele fala do que era bem peculiar àquele povo que vivia do trabalho nos campos; todos sabiam que quem semeia espera colher do que plantou. Mas, com base no que acima o salmista já dissera, entendemos que o ato de semear aqui é empregado de forma analógica, e serve como uma promessa que tem por finalidade dar ânimo aos peregrinos do humilde Templo.

Mediante a própria decepção com a cidade desolada, o salmista escreve para que seus compatriotas creiam que trabalhar na reconstrução do país é um esforço que será recompensado. Era o momento de chorar, de derramar lágrimas pela cidade em ruínas, mas sem deixar de trabalhar, de semear. Ao comparar esse ato de fé e sacrifício a ao ato de semear, o autor expressava que eles deveria também crer que todo suor derramado seria recompensado; a colheita era garantida. Em outras palavras, o direito de desfrutar da liberdade na própria pátria, de cultivar a própria terra e dela viver, a oportunidade de criar os filhos entre sua parentela, sob a própria cultura, adorando o Deus dos seus antepassados da maneira como sempre acharam correto, e não mais ter de curvar-se aos deuses ou aos opressores estrangeiros, era o que eles teriam após concluir o árduo trabalho de restauração do país.

Enfim, o salmista aqui canta para dar força aos seus companheiros de peregrinação. Ele lembra da sua libertação, da sua alegria passageira, da sua surpresa desanimadora diante do cenário de morte deixado pelos babilônios décadas atrás nas cidades dos seus pais. Então, provavelmente em pleno processo de restauração do país, ele vai à casa de Deus acompanhado dos seus familiares. Dentre seus muitos motivos de oração, está o desejo de que sua terra volte finalmente a ser digna como lhe contavam os ancestrais. Pede a Javé que lhes ajude na missão de transformar os entulhos deixados pelas batalhas em uma nação livre e próspera. E acredita, apesar de todas as dificuldades que se apresentam, que no fim eles finalmente encheriam suas bocas com um júbilo que não precisa terminar.

4 – Conclusão

O Salmo 126, visto pelo ângulo proposto nos ensina, assim como a maioria dos salmos bíblicos, mais sobre os homens em si do que sobre Deus. Os salmistas usavam suas canções como um meio de abrir o coração diante de Deus, e expressavam seus sentimentos com uma sinceridade que noutras partes da Bíblia não é comum. Eles deixam transparecer o ódio, a angústia, a fraqueza, a esperança e também a falta dela. Os salmos são exemplos de orações que merecem ser seguidos, pois neles, a linguagem poética ou o formalismo não impedem a honestidade, a transparência diante do Deus a quem cultuavam.

Neste salmo, vimos que o salmista pensava que Deus estava fazendo um grande milagre. Mas o milagre, se houve, não era como ele esperava. A vida não foi para ele tão bela como gostaria. Na verdade, a história mostra que o Templo a que ele dedicava-se voltou a ser instrumento de opressão dos mais fracos, e usurpou milhares de camponeses até que novamente acabou em ruínas; a história mostra que outros impérios voltaram a dominar violentamente aquele povo, e com crueldade que provavelmente o próprio salmista não conhecera nem na Babilônia; a história nos mostra que outros males importados como a lepra e a escravidão sob os moldes greco-romanos tornar-se-iam maldições ainda mais difíceis de suportar do que a visão das cidades arruinadas. Ainda assim, cabe a nós seguir o exemplo do salmista. Não conhecemos os dias que virão, não sabemos se realmente as opressões que nos são impostas cessarão neste mundo, se haverá um tempo em que gozaremos de justiça, paz e prosperidade; mas o que faremos se não semearmos nossas lágrimas com a fé de que colheremos com alegria? O que seria de nós se não cultuássemos nosso Deus e se não tivéssemos nele alguém a quem clamar?

Nossas canções, nossas orações e nossos textos, poderiam ser muito mais úteis se neles deixarmos transparecer nossa humanidade. Por que temos medo de falar quando os milagres não são tão bons quanto pensávamos? Por que calamos quando a realidade contradiz o discurso tradicional da fé cristã, como por exemplo, quando a vida no casamento é uma infelicidade ou quando nossos instintos nos levam a desejar a vingança e até mesmo a violência? Por que não reconhecemos que na verdade sabemos pouco ou mesmo nada de Deus e sua vontade? Se os autores “inspirados” da Bíblia assim fizeram com tanta honestidade, como eu poderia pensar que sei das coisas e tentar parecer perfeito?


Anderson de Oliveira Lima – 9 de Janeiro de 2009